sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A oratória da floresta

A simpática atendedora da FNAC não consegue encontrar na base de dados do computador a oratória da floresta, de Dmitri Shostakovitch.
Ela bem tenta, mas não encontra. Parece duvidar que exista, que será confusão minha.
Explico que se ouvia por vezes, há uns anos, na Antena 2.
Uma obra coral sinfónica que glorificava a política florestadora na Rússia, a seguir à segunda grande guerra.
E que por isso devia ser uma espécie de hino para os ecologistas.
Ou talvez não, pensando melhor, o problema desta oratória da floresta é que se destinava a louvar a política de Staline. O poema até lhe chama o grande jardineiro. E então é capaz de ter sido por isso, por ser incorreta politicamente, que a musica tenha deixado de ser transmitida.

Shostakovitch tem sido interpretado pelos comentadores ocidentais como uma vítima de Staline e das intervenções condicionantes deste na produção musical dos compositores. Prokofief, que ao contrário de Shostakovitch passou temporadas fora da União Soviética, respondeu a Staline, que o criticava por fazer musica politicamente fraca, que também achava a politica dele musicalmente fraca.
Claro que Shostakovitch foi uma vítima de Staline, mas que o homem acreditava sinceramente que só há justiça se a sociedade fôr capaz de conter as desigualdades sociais, acreditava.
E que escreveu a Oratória da Floresta, em 1945, logo a seguir à grande guerra, a acreditar num esforço da nação para criar riqueza, escreveu.
Infelizmente teve de musicar os versos que o autor do poema, Evegueny Dolmatovsky, dedicou a Staline, porque era condição de sobrevivência e permanência no país; mas este é um caso em que todos concordam em interpretar a obra omitindo ou disfarçando esses versos sem considerar que se está a amputá-la.
Por isso seria agradável que os comentadores ocidentais fossem mais parcos a lembrar a submissão a Staline e mais pródigos a mostrar a qualidade da sua musica e a sua crença na justiça social.

Mas eis que ao pesquisar Shostakovitch no Google surge o opus 81, "The song of the forests", e a referência do CD aparece imediatamente no computador da menina da FNAC.
Acho que a musica é muito bonita e devia ser mais ouvida.
Podem ouvir um bocadinho em

http://www.youtube.com/watch?v=KmZJeImdz0g

“Agora que a guerra acabou
A terra respira cheia de alegria
E recomeçam os dias de sol
…………………………………………….
Vestiremos o nosso país
Com florestas
………………………………………..
O silêncio enche-se com o alegre
canto dos rouxinóis
sobre os campos de trigo
celebrando a juventude e a primavera
………………………………………………………
Mas aqui no passado,
Não podemos ouvir
O canto do rouxinol.
O nosso povo incansável
Transformou a terra num jardim
……………………………………………..” (fonte: DECCA 1994, tradução Pat Bailey)



E porque dedico esta mensagem à Oratória da Floresta?
Porque vou comentar os incêndios em Portugal.
Área ardida da floresta portuguesa desde 2000, em ha (fonte: Ministério da Agricultura, exceto o valor de 2010, até 2010-08-31, do Sistema europeu de fogos florestais – EFFIS):

2000             159.600
2001              111850
2002              124410
2003              425730
2004              129540
2005              338260
2006                75510
2007                31450
2008                17440
2009                86670
2010                94020 *

Assim como o trigo cresce sem autorização do ministro da agricultura, como escreveu Brecht, assim também a área ardida não é a que os ministros determinam por decreto, nem a que é transmitida a ilustres visitantes numa sala cheia de computadores portáteis ligados em rede.
Escrever sobre estes assuntos tem sempre a carga negativa de estar simplesmente a opinar.
Será ou não, mas talvez eu possa escrever alguma coisa.

Primeiro porque gosto muito da Oratória da Floresta.
Já há muitos anos, ainda a floresta portuguesa não ardia assim.

Segundo, porque estamos perante uma externalidade de que qualquer cidadão, eu incluído, sofre as consequências. Assim como assim, 100 mil hectares ardidos implica que as pobres árvores já não vão poder capturar 100 mil toneladas de CO2 por ano, além de que o próprio incêndio desses 100 mil hectares representou uma emissão de 50 mil toneladas de CO2. (fonte:  www.off7.pt/)
Ao preço a que a tonelada de CO2 está (14€/tonCO2) temos 2,1 milhões de euros de prejuízo só em CO2 (a tal externalidade), o que talvez justificasse um investimento de 40 milhões de euros para comprar uns quantos Canadair (tudo indica que os aparelhos mais baratos do que este mdelo são menos eficientes).

E depois, porque em 2003 estive num incêndio, a apagar como pude, com ramos de árvores, que é um meio eficaz em grupo, quando, depois de uma mudança de vento, ameaçou os terrenos dos meus vizinhos e o meu, enquanto uma coluna de bombeiros tomava posição sem intervir (não havia casa ameaçadas).

Que ninguém se assuma como detentor da solução, porque o problema é complexo e de variáveis contraditórias, embora seja inquestionável a necessidade de aceiros (ou de caminhos de acesso em região montanhosa) e de formação das populações em medidas preventivas (e de fixação de populações no interior, claro).

Limpar os solos diminui a carga térmica mas aumenta a erosão dos solos e a escorrência das águas aumentando o risco de enxurradas. Além de que em zonas de reserva natural é interdito por lei. Isto é, a limpeza indispensável tem de ser conduzida por quem saiba o que está a fazer e a colaboração das universidades parece indispensável (por falar em universidades, terão falhado aqueles projetos de investigação com detetores automáticos de ignição, julgo que por câmaras de televisão? De facto, a área a proteger é enorme).

Alimentar centrais de bio-massa com o mato das limpezas é boa ideia e o governo apoia, mas como recolher o mato se a desertificação avança a passos de gigante com a rarefação das populações e os fechos de centros de saúde e de escolas?

Pôr gente nas torres de vigia também era boa ideia, mas faltará orçamento.

Abrir os aceiros e repavimentar os caminhos ou construí-los de novo em terreno montanhoso é dispendioso. Onde encontrar dinheiro para isto? Em programas europeus?

Comprar Canadairs é fazer um investimento vultoso que estará parado a maior parte do tempo, mas a eficiência dos outros meios é menor.

Emparcelar as pequenas propriedades suscetiveis de plantamento florestal ou, pelo menos, estimular o associativismo para facilitar as medidas preventivas e a definição das espécies mais indicadas para cada região (árvores de crescimento rápido podem ser contra-indicadas), também é uma boa ideia, mas quem trata da sua operacionalização?

Na verdade, as coisas não devem continuar assim, com tanta floresta a arder (na verdade as coisas também não devem continuar assim com a desertificação do interior).

Donde, se não se quiser fazer um concurso público internacional para resolver a questão, haverá que utilizar os métodos da “Sabedoria das multidões”: organizar a colaboração das pessoas que têm conhecimento desta problemática, de uma forma pluri-disciplinar, e ir aplicando as medidas corretivas.

Por mim, posso garantir que o ramo de arbustos é eficaz, mas exige muita gente e é perigoso. Mais vale desenvolver as medidas preventivas e perguntar a quem sabe o que se deve fazer.

Talvez que um caminho seja perguntar à Portucel/Soporcel (120 mil hectares) e à Altri (82 mil hectares), associadas na Afocelca.
Dos 200 mil hectares à sua guarda, arderam em 2009 cerca de 800 ha (0,4%). Custaram, a prevenção e o ataque, 4 milhões de euros.

Considerando que a floresta portuguesa ocupa 3,3 milhões de hectares (de que 85% é privada, 3% pública e 12% de baldios – fonte:   http://pt.wikipedia.org/wiki/Floresta_portuguesa) teríamos, com economia de escala, custos de proteção da ordem de 30 milhões de euros, o que levará muitos a preferir o conhecido aforismo português de “deixar arder” 100 mil hectares todos os anos; que gerariam 0,5 milhões de euros de receitas anuais se a rentabilidade fosse a mesma das empresas da Afocelca ( os 200 mil hectares da Afocelca geram cerca de 1 milhão de euros de receitas anuais e contribuem para o PIB com 2,8% ~ mil milhões de euros – notar que a maior parte das receitas vem da pasta de papel obtida a partir de eucalipto).

Enfim, é preciso que o "povo possa transformar a terra ardida num jardim".


* PS - Segundo o relatório da Autoridade florestal nacional, citado pelo DN de 3 de Setembro, a área ardida em Agosto foi de 105.806 ha

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