quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Hoje anuncio que me despeço

Uma amável comentadora deste blogue já tinha cometido a inconfidência de revelar a proximidade do termo da minha vida profissional .
Talvez este blogue tenha facilitado a transição, que tenha ajudado a preparar a nova forma de vida, que espero seja ativa, mas sem compromissos profissionais.
Não me iludo com a ideia de ir vender “know-how” e pôr a render a experiencia adquirida.
Os compradores de agora compram outras ilusões, que a experiencia desacredita o fator de produção mais concreto.
Este é o tempo da inovação e da imagem, em detrimento da comprovação e do conteúdo real. E já vem tudo feito.
Por isso, com a satisfação de ter vivido o tempo da nossa integração na comunidade europeia e de ter assistido à consolidação do sistema de segurança social, em sintonia com o artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, vou , sem beliscar a minha consciência, porque nunca quis chegar-me aos degraus e aos lugares da frente, libertar a minha empresa da obrigação de me pagar salário.
Por isso leio, como se quisesse que pudesse ser meu, este poema de Tolentino Mendonça:

Sobre um improviso de John Coltrane

Ainda espero o amor
Como no ringue o lutador caído
Espera a sala vazia

Primeiro vive-se e não se pensa em nada
Não me digam a mim
Com o tempo apenas se consegue
Chegar aos degraus da frente:
É difícil
É cada vez mais difícil entrar em casa

Não discuto o que fizeram de nós estes anos
A verdade é de outra importância
Mas hoje anuncio que me despeço
À procura de um país de árvores

E ainda se me deixo ficar
Um pouco além do razoável,
Não ouvem? O amor é um cordeiro
Que grita abraçado à minha canção

(José Tolentino Mendonça, Baldios, ed. Assírio & Alvim)


Vou trocar a minha casa em Lisboa por uma casinha térrea com um terreno à volta, com frisos azuis, na região de Kuçadaci, na costa ocidental da Ásia Menor, mesmo em frente da ilha de Samos.
Vou encher os olhos com o azul do Egeu e sentar-me nas ruínas romanas e gregas.
Como foi possível aos gregos antigos libertarem-se da ocupação exclusiva com a alimentação das populações e a produção de bens e o transporte entre ilhas, com os barcos e os meios de produção de que dispunham?
Como conviveram os escravos, os matemáticos, os filósofos, quando o clima convidava à inação?
Como foi possível sintetizar toda a cultura nascida para benefício de todos nós na região do Eufrates e do Tigre, de Babilónia e de Susa?
Quando a nós próprios nos custa fazer os cálculos dos juros compostos e só no século XVIII se conseguiu igualar a precisão do cálculo do arco do minuto da circunferência terrestre que Eratostenes conseguira no século II antes de Cristo…
Posso viver em Kuçadaci porque finalmente a Turquia foi admitida na União Europeia.
Mas também porque finalmente o PKK viu satisfeita a sua reivindicação de autonomia dos curdos, passando por cima do traçado disparatado das fronteiras que as tropas do império britânico impuseram aos povos da região a seguir à vitória na primeira grande guerra.
Irei à praia em Chipre sem sair da união europeia , mas também em Gaza, agora que os fundamentalismos do lado de Israel e do lado da Palestina cederam finalmente o passo aos tolerantes.

Bom, talvez dê um saltinho a Teerão, para matar saudades .
Por lá estão a construir o caminho de ferro Ancara-Damasco-Bagdad-Teerão-Kabul-Islamabad-Nova Deli e as mulheres já andam de cabelos soltos.
Finalmente.
Vai ser uma linha que não vai bater recordes de velocidade; não vão ser mais de 300 km/h , mas vai funcionar bem , certamente.
Material circulante chinês, com elevada probabilidade.
Serão 10 horas para ir de Ancara a Nova Deli sem ter de tomar o avião.
Os técnicos sempre se entenderam melhor do que os políticos para bem dos povos e para a compreensão entre eles.

Desde que o lucro deixou de ser a primeira prioridade das grandes empresas mundiais, que as transações bolsistas em qualquer mercado são taxadas de forma inversamente proporcional ao indicador de qualidade de vida e satisfação das populações mundiais, que o sigilo bancário in ou off-shore acabou, e que os governos começaram a aplicar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, os conflitos foram desaparecendo e as comunidades concentraram-se no trabalho para o bem comum.
Espero viver ainda o suficiente para fazer a viagem a Nova Deli.
Não me esquecerei de descer em Bagdad e fazer um desvio por Babilónia, Susa e Persépolis até Pasargada, a rever todas as gravuras do meu livro de história antiga do próximo oriente e a encontrar Manuel Bandeira (Vou-me embora pra Pasárgada, aqui eu não sou feliz, lá a existência é uma aventura de tal modo inconsequente que Joana a Louca de Espanha, rainha e falsa demente, vem a ser contraparente da nora que nunca tive … Em Pasárgada tem tudo, é outra civilização, tem um processo seguro de impedir a concepção, tem telefone automático, tem alcalóide à vontade, tem prostitutas bonitas para a gente namorar. E quando eu estiver mais triste, mas triste de não ter jeito, quando de noite me der vontade de me matar - lá sou amigo do rei — terei a mulher que eu quero na cama que escolherei. Vou-me embora pra Pasárgada.)
Mas voltando à realidade, já vai avançado o projeto da linha de Nova Deli para Pequim.
Más notícias para as companhias de aviação; mas os consumos e as emissões também já estavam insustentáveis.

E boas perspetivas para o período de reforma que se avizinha.



PS – Se o leitor teve a paciência de chegar até aqui, duvidando certamente da posse em plenitude das faculdades mentais do autor destas linhas e citações, merece ser recompensado com um esclarecimento.
O autor apenas utilizou uma figura de estilo que equivale à caricatura no desenho.
Acentuando e exagerando traços de modo a perceber-se bem a diferença entre a realidade e aquilo que desejaríamos ser possível, imitando canhestramente o que Manuel Bandeira idealizou no seu poema.
E se concorda com o autor que a diferença é de facto incomensurável, provavelmente partilhará com ele o pensamento de que ao longo dos anos os dirigentes políticos, económico-politicos e religiosos nos foram conduzindo a todos à situação em que estamos, ao mesmo tempo que sistematicamente repetiam que eram os eleitos e os melhores para tomarem decisões, pelo que esta história nos ensina que devemos antes ser nós todos a tomar as decisões, de acordo com os métodos que não são do autor, mas de que já vos tem falado ao longo deste blogue.

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