terça-feira, 19 de junho de 2012

Fernando Pessoa - o Banqueiro Anarquista

121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132 … conto mentalmente 12 segundos depois do arranque.

Sinto um ligeiro balanço; o maquinista cortou a tração, entrou em deriva por inércia.
Atingiu os 45 km/h ao fim de 12 segundos com uma taxa de aceleração de 1 metro por segundo quadrado.
As políticas de poupança de energia obrigam ao limite de 45 km/h.

Enfio a mão esquerda no bolso para retirar os Contos Completos de Fernando Pessoa. Vou aproveitar a viagem de metropolitano para começar a ler o Banqueiro Anarquista.
Reparo na mulher ainda jovem mas pobremente vestida que se equilibra junto das portas.
Costumo vê-la quando viajo a esta hora, no princípio da noite.
É muito magra e tem o rosto precocemente envelhecido.
Não dobra o joelho esquerdo e por isso arrasta a perna com um movimento circular enquanto se debruça a pedir esmola.
Não reparou no título do livro e pede-me uma “small coin”.
Tento afastá-la com uma cara fechada mas ela diz que tem fome e corrige o pedido para uma pequena moeda, que também tem frio e está a juntar 8 euros para comprar um casaco ali, e aponta para a superfície; repete o pedido, uma moeda e um sorriso, foi o que disse.

Duas mulheres bem vestidas, de aparência nórdica, desviam a cara e interrompem a conversa animada.
Outro nórdico, seguramente um técnico que veio vender qualquer coisa neste país, de gravata amarela e casaco de riscas, rebusca nos bolsos e também contribui com uma moeda.
A meu lado uma mulher jovem e robusta masca obsessivamente uma pastilha elástica.
Recebo os eflúvios do mentol que não desejo, mas ela está alheada da cena que a rodeia e pressiona compulsivamente o visor do seu telemóvel onde se mostram as cartas de poker.
Obterá os seus rendimentos de algum negócio que consegue gerir mas depende completamente do jogo. Possivelmente terá deixado de fumar e não consegue retirar doutros centros de interesse que não a pastilha elástica e o poker do telemóvel a produção de dopamina nas suas sinapses de prazer.

Entra na estação seguinte mais um mendigo.
É negro, traz um barrete magrebino e usa uma barba rala e encaracolada.

Já iniciei a leitura do Banqueiro Anarquista e já sei que ele é anarquista, para grande espanto do seu interlocutor, no conto, em teoria e na prática, contrariamente ao comum dos anarquistas, que só o são em teoria.

Sigo o raciocínio do banqueiro:

“O que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente, e daí resulta a revolta contra as convenções sociais que tornam essa desigualdade possível.
As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções – essas, por que não evitá-las?”

E eis como Fernando Pessoa, que não gostava de aventuras progressistas nas ideologias políticas, sabia identificar a origem dos males das sociedades e das suas incapacidades de solução.

“O mal verdadeiro são as convenções e as ficções sociais que se sobrepõem às realidades naturais, família, Estado, religiões, dinheiro.
As ficções são más porque não são naturais.
Qualquer sistema que não seja puramente anarquista, e que não queira como este a abolição de todas as ficções, será também uma ficção a implantar em vez de outra. Será mesmo um crime por ser uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma”

Ocorre-me que Fernando Pessoa estava desgostoso com a experiencia soviética (o Banqueiro anarquista é de 1922), e desiludido com a experiencia portuguesa da I Republica.

Que pensaria ele dos seguidores de Hayeck e Friedmann que, depois da crise financeira internacional de 2008 insistem nas teses neo-liberais e na cisão das sociedades castigando uma parte da população com medidas de rigor austeritário e de congelamento e decrescimento do PIB? Impondo os dogmas de desregulação do mercado e das formas de produção e de propriedade?

“Não será realizável o sistema anarquista? Se o atual sistema é injusto, há vantagem, porque há justiça, em substitui-lo por um mais justo. O critério de justiça é o de ser verdadeiro e natural (que é o que é do instinto) por oposição à mentira das convenções.
E o natural ou é realizável ou não é”


Será que Fernando Pessoa já tinha a consciência ecologista do que é sustentável?


“A sociedade pode ser natural e então pode haver a sociedade anarquista e livre.
Ou a sociedade não pode ser natural por ser essencialmente ficção e então, teremos de aceitar a ficção a que estamos habituados, o atual sistema burguês.
Mas a passagem material ao sistema anarquista não poderá ser feita de modo gradual através de realizações materiais e sociais. Só poderá haver uma adaptação mental, um estado intermédio de transição entre a sociedade burguesa e anarquista, uma adaptação dos espíritos à sociedade livre.
Ainda haveria uma hipótese de passagem material à sociedade livre, a ditadura revolucionária, a ditadura do proletariado.
Mas um regime revolucionário tem de ser despótico, tem de criar uma tirania, mesmo que seja nova, uma tirania.
E isso é o que os verdadeiros anarquistas não querem, embora na prática também acabem por fazer quando uns mandam e obrigam outros a ser o que eles querem .
Pelo contrário, a revolução social deve ser preparada por um trabalho intenso e contínuo, de ação direta e indireta, tendente a dispor todos os espíritos para a vinda da sociedade livre, e a enfraquecer até ao estado comatoso todas as resistências da burguesia”

Enquanto Fernando Pessoa teorizava sobre a revolução, ou o banqueiro por ele, entraram na nova estação, que era de correspondência, um grupo de alunas da universidade vestidas de preto, de uma tuna, que se puseram a ensaiar com duas violas, e mais um pedinte, equipado com uma trompa do Nepal, que se pôs a roncar com o instrumento estendido até ao chão.

“No estado social presente não é pois possível um grupo de homens trabalharem juntos pela liberdade, contra as ficções sociais, sem espontaneamente criarem tirania nova entre si. O que há a fazer? Simples … trabalharmos para o mesmo fim, mas separados”

Fernando Pessoa ainda não tinha vivido a crise da desregulação financeira de 1929, nem conheceria a de 2008, e não podia saber que não é por falta de coragem que as populações preferem manter-se sob o domínio dos grandes grupos financeiros. Talvez receiem o desconhecido de si próprios.

Seguramente, resolveram dar ouvidos à propaganda intensa de quem culpou ao longo dos anos o estado providencia por gastar dinheiro, de quem desacreditou o espírito do serviço público e os servidores públicos, de quem lhes inculcou o dogma da supremacia do individualismo ou da esperança na lotaria das oportunidades. Nas tentativas de revolução social aconteceu o previsto, criou-se tirania nova.

Mas isso, tanto sobre a desregulação financeira como sobre as revoluções falhadas, o banqueiro ainda não tinha dados históricos sobre que pudesse estabelecer doutrina. Nem dispunha dos desenvolvimentos da teoria da negociação de John Nash, nem do equilíbrio de Pareto, nem das técnicas de abordagem e resolução dos problemas, de coordenação e convergencia de trabalho em equipa de elementos de sensibilidades e vontades diversas.

“Por isso decidi subjugar a principal ficção social, o dinheiro, e fiz-me banqueiro. Deu em resultado eu enriquecer, portanto tive uma compensação egoísta e libertei-me do dinheiro conseguindo a liberdade. Posso ter usado a tirania contra quem precisou do meu banco, mas não criei nenhuma tirania nova. A tirania é das ficções sociais e não dos homens. Se destruirmos todos os capitalistas e subsistir o capital, outros capitalistas surgirão. Mas se destruirmos o capital deixará de haver capitalistas”.

O comboio chegou à minha estação ao mesmo tempo que o banqueiro terminava a sua fastidiosa peroração e se levantava da mesa com o seu paciente interlocutor.

Teria Fernando Pessoa querido traduzir para português o pessimismo de Scopenhauer e de Nietzsche, a incompletude dos objetivos falhados na organização da sociedade? Da decadência das soluções políticas que sistematicamente não dão resposta à humanidade e preferem deixá-la a contas com as leis da seleção natural e do interesse e da vontade do poder egoístas? Do fanatismo moral e da insustentável e irracional movimentação humana, como moléculas num recinto fechado?
É um facto que da sua poesia ressuma isso mesmo.
Mas não sou grande intérprete do seu pensamento nem da sua poesia.

Os mendigos do metropolitano lá continuaram.





Citações: Contos completos, Fernando Pessoa, ed.Antígona, Maio de 2012




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