segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Cartas de Bucuresti, abril de 2003

Nota prévia - Este blogue serve também para o seu humilde escriba deixar algumas recordações da sua vida profissional. Neste caso, para que os concidadãos romenos não se zanguem com o que deixo escrito, acrescento que em quase dez anos e depois da adesão da Roménia à União Europeia, muita coisa terá mudado; por exemplo, o hotel abandonado, preferido de Ceausescu, é hoje o hotel Cota 1400, muito utilizado por turistas ao longo de todo o ano.


1ª carta


Querida amiga

Aqui estou, como prometido, a dar-lhe noticias da terra de Bucur.
Já é noite, talvez em Lisboa ainda não e a minha amiga ainda esteja no seu gabinete.
Escrevo calmamente no meu quarto de hotel com o computador portátil e amanhã deixarei a memória USB com o texto na receção para lho enviarem por email.
O novo aeroporto de Bucareste pareceu-me bem construído, mas o átrio das chegadas é demasiado pequeno para a multidão que espera.
No meio da confusão  de motoristas de táxi a oferecer os seus serviços um deles perguntou-me em francês para onde eu queria ir.
Em francês, como se adivinhasse a minha ligação à cultura francesa, apesar dos crimes de Napoleão.
O homem era grande e anafado, parecia estar sozinho e aceitei a proposta do serviço por 20 euros.
O táxi era um Dacia com 20 anos, igual ao velho Renault 12.
O motorista era conversador; quando passámos pelo arco do triunfo disse-me que era um admirador do general de Gaulle, que tinha estudado francês no liceu_e repetiu muitas vezes que Bucareste é a Paris da Europa Oriental; que gosta de receber a paga em euros e acha   que a Roménia espera ansiosamente a entrada na União Europeia.
Bucareste à noite é linda, com iluminação modesta nas avenidas arborizadas.
Vê-se que houve influencia dos “boulevards” parisienses e dos campos elísios.
Às minhas perguntas sobre os partidos políticos não respondia, mas sobre as difíceis condições de vida e de trabalho era pródigo em queixas.
O hotel Marriot fica a seguir ao grande palácio dos congressos, de arquitetura monumental e massiça, que Ceausescu mandou construir, rodeado por um amplo espaço ajardinado, de vegetação rasteira. É agora a sede do Parlamento nacional.
O motorista entrega-me a pequena mala e diz que o transporte de um hóspede do Marriot vale mais do que 20 euros, e que tinha gostado tanto de conversar em francês comigo que ficaria satisfeitíssimo se eu lhe desse 30 euros.
Que foi o que fiz, perante um empregado do hotel um pouco escandalizado.
Como é hábito nas nossas reuniões de técnicos de eletrotecnia de metropolitanos, uma simpática refeição ligeira e variada serviu de base ao reencontro do nosso grupo e à conversa sobre os acontecimentos internacionais desde a reunião anterior, em Bruxelas. Foi pena não ter trazido a minha mulher, para fazer companhia às simpáticas esposas dos colegas romenos anfitriões e dos colegas de Hamburgo e de Varsóvia,  mas seria inconveniente para o programa das suas aulas.
A qualidade do serviço do hotel é muito boa e os empregados são amáveis.
Recolho ao quarto para rever os assuntos a tratar amanhã na reunião e para lhe escrever estas breves palavras.

Veremos se amanhã à noite não estarei demasiado cansado para lhe relatar o dia.

Boa noite.



2ª carta

Interessantíssimos os temas da reunião de hoje.
Analisámos todos os sistemas de manutenção de todos os tipos de equipamentos elétricos ou sistemas de controle em uso nos metropolitanos do nosso grupo. Mas talvez isso não lhe interesse muito, pelo menos por enquanto, no seu percurso profissional.
Possivelmente por razões económicas, a reunião decorre num dos edifícios do metropolitano de Bucareste.
Sabe que não gosto muito de um indicador que estou a construir?
O metro de Lisboa tem cerca de 30 km de rede e foi inaugurado em 59. O metro de Bucareste tem cerca de 50 km e foi inaugurado em 74. Multiplicando a extensão da rede pelo ano de inauguração obtemos o tal indicador, que dá uma ideia pouco favorável par ao nosso metro. É verdade que o transporte coletivo na Roménia, por força do fraco poder de compra da população, predomina sobre o transporte individual, mas o metro de Lisboa continua mal colocado em âmbito de cobertura geográfica e de volume de população se o compararmos com as cidades de poder de compra semelhante ao nosso. Infelizmente, não temos sabido aplicar da melhor forma o dinheiro que temos investido na nossa rede.


A parte central de Bucareste ostenta os vestígios das glórias passadas no inicio da belle epoque, antes da primeira grande guerra, no período de expnsaõ da industrialização germânica, em quarteirões de mansardas, ou em ruas sossegadas de grandes mansões. Não se preocuparam muito em conservar os bairros antigos. A urbanização à francesa sobrepôs-se. Consta que o rei Carol I dividia as suas capacidades estratégicas pela captação dos investimentos alemães e pela  cultura francesa. Mas agora os edifícios mostram ruína. É deprimente ver nas ruas comerciais a maior parte das lojas fechada, com o correio a apodrecer e o lixo a acumular-se. Há movimento de pessoas; deduzo, pela forma como se deslocam,  que têm trabalho; reparo nas jovens mulheres, sempre vestidas de forma clássica. O transito é escasso, maioritariamente táxis Dacia, e há ainda veículos de tração animal, com rodas de borracha, pobres bichos, pobres donos. Nas placas centrais, ajardinadas e arborizadas, vejo vários  grupos de funcionárias municipais. Mas estão normalmente sentadas, sem trabalhar, com os cestos do farnel ao lado. Vestem saias largas e compridas e lenços na cabeça de tez morena. Detenho-me a ler o programa do teatro de ópera, também rodeado de uma área verde. É grande o contraste com a pobreza geral, quase todos os dias há um concerto, um bailado ou uma ópera. Reparo num nome importante no panorama operático, Elena Obratsova.

Depois da sessão da tarde da nossa reunião e antes do jantar, saí do hotel para explorar a longa avenida no sentido dos subúrbios.
Mais uma vez vi gente movimentando-se rapidamente de regresso a casa, aparentemente poupando dinheiro graças ao percurso a pé.
Os passeios são largos, mas os pavimentos são poeirentos. A urbanização é incaracterística. Há uma igreja ortodoxa, com as suas cúpulas, abafada entre blocos de habitação social. A distribuição elétrica é feita por cabos pendurados em postes de madeira. Mas vejo confiança no olhar da mulher jovem que caminha determinada pelo passeio, com um pequeno saco de compras, equilibrando-se nos seus sapatos clássicos de verniz preto de salto alto. Assim como assim, há sempre alguém que acredita no futuro.

Espero não a ter maçado com mais esta carta.
Até amanhã.

3ª carta

Querida amiga

Estou cansado.
Este foi o dia mais cansativo, e só teve, de trabalho, uma rápida visita ao centro de comando do metro. Os nossos colegas estão muito contentes com os fornecimentos da grande companhia alemã, mas eu diria que o equipamento é um pouco tosco, não será o ideal para facilitar o comando centralizado do movimento dos comboios em toda a rede e para suportar as extensões da rede que estão programadas, mas enfim, funciona.
O metropolitano de Bucareste decidiu poupar-nos um dia inteiro de trabalho e ofereceu-nos um passeio de 150 quilómetros até aos Cárpatos, para visita do palácio romântico do rei Carol, o castelo de Pelese, a norte de Ploiesti.
O rei Carol era um nobre alemão a quem ofereceram o trono da Roménia, na altura da independência do país relativamente ao império otomano.
Vivia-se a época dos nacionalismos românticos, e o elemento que entrelaçava os novos países era a ligação às casas reais da Europa no poder. Tudo subordinado, evidentemente, à ascensão dos grandes industriais e das casas financeiras suporte da industrialização.
Deixe-me contar-lhe um facto terrível: ao longo de toda a estrada não vi uma única cabeça de gado nos campos, nem vacas, nem ovelhas, nem cabras.
Passámos por ruínas de explorações petrolíferas – como sabe, a Roménia tem poços de petróleo e de gás, em terra e no mar Negro -  mas as torres que avistei da estrada estavam inoperacionais.
A Roménia espera , provavelmente, a entrada na união europeia para arrancar com as explorações agro-alimentares, com o reinicio da exploração petrolífera e o desenvolvimento do turismo, não sei.
Mas sei que a desmotivação de todo um povo e o acantonamento de uma economia frágil na zona da armadilha da pobreza dos rendimentos impossíveis para qualquer investimento, conduz a esta desgraça.
Eu sei que todos os povos, em épocas de crise, são capazes de encontrar dentro de si próprios meios de sobrevivência que escapam aos registos dos economistas, mas a sensação que me domina é a de que, se por uma catástrofe natural o país desaparecesse, ninguém iria importar-se.
Antes da visita ao palácio, levaram-nos ao hotel alpino preferido de Ceausescu para as suas férias na neve e para as receções aos aliados, a poucos quilómetros de Siniu, onde se encontra o palácio de Pelese.
Foi uma desilusão para os nossos anfitriões, que não esperavam que o hotel estivesse fechado. O casal mal encarado que guardava o complexo informou que só abririam para os 3 meses de verão. O colega do metro de Bucareste lamentou baixinho, com sinceridade mas claramente sem querer defender a politica cega de Ceausescu, que no tempo dele nunca o hotel estaria fechado.
Siniu parecia feita de casas de bonecas, lá ao fundo. Do outro lado, as encostas cobertas de coníferas ocupavam o resto do horizonte.
Estavamos nos Cárpatos.
E imersos em mais um exemplo da desmotivação e da espera pelos investimentos da Europa.

Regressámos há pouco, sem grande vontade para jantar depois do abundante almoço oferecido no palácio.
Vem-me à ideia a comissão de receção aos turistas à entrada da rampa de acesso ao palácio do rei Carol: um violinista e a sua musica romena e uma cigana robusta com uma pulseira de ferro e um pequeno leão a ela acorrentado. Lá tivemos de deixar umas moedas, que no meu caso até foram euros.

Desejo-lhe uma boa noite.

Até amanhã.





4ª carta

Estou a escrever-lha do aeroporto de Munique. Tenho ainda 3 horas antes do embarque para Lisboa e já combinei com a simpática assistente da sala de informática do aeroporto o envio do email com este texto, que o meu portátil ainda não tem wi-fi.

Aproveitei o sábado de manhã para dar mais uma volta pela cidade, antes de seguir para o aeroporto.
Visito o jardim botânico. Está repleto de espécies interessantíssimas. Mas o estado de abandono e de desleixo é mais uma vez deprimente. Surpreendo atrás dos vidros da estufa laboratorial o semblante desanimado de duas botânicas, atrás dos microscópios. Comovo-me com a degradação dos canteiros, dos caminhos ladeados de palmeiras, com a ausência de jardineiros, com os vidros partidos das estufas, com a invasão inconveniente das raízes das árvores tropicais. Eis a Roménia dos nossos dias, esperando a salvação com a união à Europa.
Regresso aos boulevards e à praça da Liberdade.
Desço o parque  rei Carol, quase gémeo do nosso Parque Eduardo VII.                      .
Um grupo de jardineiros está alargando as caldeiras das árvores para aumentar a eficácia da rega. O trabalho é para ser feito com enxadas, não há mecanização, e a rega será com um depósito com rodas, puxado por homens. Cada um dos jardineiros está junto da sua árvore, alinhadas segundo o declive até à rotunda ao fundo, a prça da Liberdade. Falta pouco para o meio dia. Todos  eles estão imóveis, com o queixo encostado ao cabo da enxada, contemplando a pequena carroça que ao longe,  na rotunda, contorna a placa central onde um grupo de mulheres de saias amplas apanha as ervas daninhas. De repente, ouve-se a sirene do meio-dia e todos eles largam as enxadas, que caem no chão, e dirigem-se para o refeitório. Continuo a descer o declive e verifico que as apanhadoras de ervas daninhas têm outro horário, porque continuam a trabalhar, porém, do seguinte modo: estão alinhadas lado a lado, mas imagine que estão todas em pé, direitas, menos as duas da ponta direita, a última com o tronco a 90º e a penultima completamente dobrada, em plena função arrancadora da erva.  Imagine agora que, em frente dessas duas, um jovem em mangas de camisa e calças enfiadas nas botas de jardineiro corre desalmada e paralelamente à fila, da ponta direita para a ponta esquerda. À medida que corre, as mulheres que deixa para trás vão-se endireitando e aquelas de que se aproxima vão-se dobrando. Chega ao fim da fila e recomeça em sentido inverso. Há um efeito de onda que se propaga de um lado para o outro e depois para o outro lado.
O jovem virá a ser dirigente de qualquer coisa, pelo entusiasmo com que desempenha a sua função de encarregado. Terá aperfeiçoado a sua técnica de gestão de pessoal nalgum curso de motivação  e de otimização dos ativos humanos. Mas deixou-me um pouco triste.

No caminho de taxi para o aeroporto, recordo as conversas que tive com o nosso colega do metro de Bucareste: que a Roménia tem de desenvolver o turismo, pôr a funcionar a extração de petróleo e de gás e, sobretudo, que não cometa o erro de deixar estiolar a sua produção agro-alimentar. Que nunca se deixem embalar pelos produtos alimentares mais baratos da Alemanha e da Polónia, porque a autonomia alimentar e energética são os pilares da independência politica e da soberania. Que não se iludam com a miragem da união europeia a distribuir dinheiro sem que os seus diretórios gémeos dos grupos bancários e industriais queiram em troca ficar com o controle da atividade económica mais rentável, e sobretudo, que não se iludam com a febre da construção de edificios de grandes arquitetos e de auto-estradas e de empréstimos para o consumo.

O táxi que me levou ao aeroporto foi chamado pela receção do hotel, que aliás insistiu em fazê-lo. Desta vez era um Mercedes grande, com motorista de fato completo e gravata, serviço de limusina. Paguei dez euros e o motorista recusou a gorjeta. Mas não falava francês.  São diferentes, a economia registada que paga impostos e a economia paralela.
Lojas vazias de bens e de pessoas no aeroporto.
Entrada para o avião.
Reparo que algumas passageiras são mulheres jovens, bem vestidas e penteadas de forma moderna, fora do padrão que observara na cidade.
Sorte, uma delas senta-se ao meu lado.
Quando chega a refeição pergunto toscamente para onde vai. Digo-lhe que é uma draguna demisoara (uma bela rapariga) .
Andrea  conta que estuda química alimentar e que vai continuar os estudos em Madrid. Que tem família em Sevilha. Ri-se muito quando lhe pergunto se as outras belas romenas também vão estudar para Espanha, mas confirmo que domina a sua especialidade quando lhe falo do meu refluxo esofágico e das alergias do meu cólon excitavel.
O seu corpo é magnifico, e o cabelo apanhado para trás dá-lhe ao olhar um sentido penetrante, ao mesmo tempo meigo e esquivo.
Recordo-me do meu professor de Economia, Daniel Barbosa, antigo ministro salazarista, que explicava que o que equilibrava a balança de pagamentos de Portugal eram as receitas do turismo e as remessas dos emigrantes, apesar do esforço de industrialização e de autonomização da produção de energia elétrica.
Andrea ainda esteve sentada a meu lado na sala de espera do aeroporto de Munique, mas depressa foi chamada, tal como muitas das outras jovens romenas para o embarque para Madrid. Mas deixou-me o numero do seu telemóvel. Pode ser que um dia venha estudar química alimentar para Lisboa.

Já anunciaram também o meu embarque.
Vou acabar, porque ainda tenho de pedir à simpática assistente para lhe enviar o email e de percorrer vários tapetes rolantes até ao avião.

Até muito em breve.

Um beijo.


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