quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Acidente de Alfarelos - comentário ao relatório preliminar

Declaração de interesses:        O comentário seguinte ao relatório preliminar do acidente de Alfarelos e as sugestões apresentadas pretendem contribuir para uma cultura de livre debate de questões de interesse público que ajude a encontrar deficiências e soluções para evitar que se repitam. Nesse sentido, pôr hipóteses por insuficiencia de informação, que possam não ter correspondência com a realidade neste caso, mas que podem ter noutros, como aconteceu no meu primeiro comentário a este acidente, não pretende transgredir a ética profissional nem lançar a confusão.
Recordo a cultura anglo saxónica, com os seus organismos dedicados a investigar os acidentes, sempre com o objetivo de evitar que se repitam, e que, combatendo o secretismo, convidam os cidadãos a  apresentar contributos.
O presente comentário, na parte relativa a sistemas automáticos de proteção da marcha de comboios,  só foi possível com o que o seu autor aprendeu ao participar no estudo e implementação do sistema ATP (automatic train protection) que no interesse da maior segurança dos utilizadores do Metropolitano de Lisboa esteve em vigor de 2000 a 2009 na sua linha vermelha, não tendo o autor conseguido opor-se à sua desativação.
Pretende-se assim com o comentário contrariar a eventual descrença que depois deste acidente se possa ter nos sistemas ATP, através das melhorias sugeridas.



Fotografia panorâmica:


O relatório preliminar do acidente de Alfarelos pode ser visto nos sites do IMTT, da CP e da REFER, por exemplo em:
http://www.imtt.pt/sites/IMTT/Portugues/Noticias/Paginas/AcidenteferroviarioAlfarelosRelatorioPreliminar.aspx



Assinalo o importante passo que representa a sua divulgação, em vez de, em secretismo, pedir que se aguardem as conclusões. O secretismo foi o caminho seguido depois do acidente de Caxias de Maio de 2012, não tendo sido divulgados os resultados.
Lamenta-se que o GISAF, órgão que de acordo com as normas europeias deveria proceder ao inquérito independente, não tenha meios para o fazer. O próprio IMTT não os terá. Deve no entanto reconhecer-se a capacidade técnica dos técnicos da CP e da REFER e nisso até concordo com o senhor ministro da Economia e Transportes, possivelmente apreciador da prática anglo-saxónica de divulgar e debater as questões relacionadas com acidentes. Seria interessante ver o senhor secretário de Estado trabalhar, por exemplo, para a rápida reativação do GISAF. Este apresentou o seu relatório do acidente do Tua e depois perdeu capacidade (não concluiu, por exemplo, o relatório dos atropelamentos mortais no Metro sul do Tejo).
No caso do acidente de Alfarelos, tudo indica estarmos perante um acidente complexo e pouco vulgar, ficando registados no relatório preliminar os dados de posição e velocidade retirados do Convel.

Dados registados pelo relatório - O relatório confirmou que os sistemas de sinalização e de controle automático da velocidade CONVEL estavam operacionais.
Falta ainda analisar os dados do autómato SIBAS de controle da locomotiva do IC, o que se pensa dever ser feito com a colaboração do fabricante Siemens, nomeadmente para eventuais esclarecimentos sobre os gradores taquimétricos e o sistema de deteção de patinagens (bloqueio das rodas ou a girar a velocidade inferior à correspondente ao avanço real)-patinhagens (rodar em vazio ou a velocidade superior à correspondente ao avanço real) (sistema anti slip-skip, o sistema que aciona o ABS quando deteta rodados com velocidades diferentes e promove a readerencia).
Os dados disponíveis necessitam de alguma confirmação com a leitura do SIBAS porque o relatório detetou  discrepancias entre as coordenadas de alguns pontos de controle, os tempos e as posições verificadas após o acidente.
No entanto, eles são suficientes para calcular as desacelerações de travagem entre os sinais luminosos e os pontos de controle, concluindo-se, embora com a reserva de posterior afinação das correspondências entre os pontos quilométricos e as velocidades registadas,  que:
-  cerca de 800 a 900 m depois do sinal 1960 A (sinal a cerca de 1800 m da estação Alfarelos) as condições de aderência não eram boas, embora geriveis.
- a cerca de 400 m antes do sinal S1 de entrada (que se encontra a cerca de 550 m da estação Alfarelos) a aderência reduziu-se extremamente, provocando deslizamentos (patinagens) :
- o primeiro comboio, o regional, registou uma desaceleração de 0,017 m/s2  ao longo dos 200 m imediatamente antes do sinal, e , já com a travagem de emergencia atuada pelo CONVEL, de 0,17 m/s2 entre o sinal e o ponto de paragem, 269 m a seguir ao sinal.
- o intercidades registou uma desaceleração de 0,076 m/s2 nos 400 m  antes do sinal S1 e, já depois da travagem de emergência acionada pelo CONVEL, de 0,7 m/s2 até colidir.

Segundo os registos, as condições de aderência antes do sinal S1 eram impossíveis de gerir sem recurso à travagem de emergencia. Mesmo que o comboio se aproximasse a 30 km/h e iniciado uma travagem de serviço máxima a 100 m tê-lo-ia ultrapassado (aliás, segundo os registos, o regional deslocava-se a 36 km/h  quando a 200 m do sinal) .

As coordenadas espaço-tempo terão ainda de ser corrigidas com recurso aos registos do SIBAS (em 72 horas não é possível analisar um acidente destes)

Condições normais de exploração e regulamentares -  De acordo com as informações publicadas, o código de sinalização luminosa é o seguinte:


Segundo o relatório preliminar, era o seguinte o estado dos sinais durante o acidente:
sinal antes do 1960 A -----  amarelo intermitente (objetivo 60km/h)
sinal 1960 A ----------------  amarelo fixo (objetivo 30 km/h)
sinal S1  ---------------------  vermelho   )




A paragem antes do sinal S1 (proibitivo, por exemplo, por  um itinerário incompatível para a linha da Figueira da Foz, ou por falhas na deteção da posição das agulhas) é perfeitamente possível em condições normais de aderencia passando pelo sinal 1960A a 130 km/h conforme registado pela taquimetria.
Para uma desaceleração de 1 m/s2 em condições normais, a distancia de travagem para essa velocidade é de 815m (considerando um declive de 2%),  ainda a 900 m do sinal S1 de entrada em Alfarelos.
No entanto, de acordo com a sinalização luminosa, o sinal 1960 A , encontrando-se amarelo fixo, isso significa que a velocidade objetivo no troço é de 30 km/h (quando no troço anterior, precedido do sinal amarelo intermitente, a velocidade objetivo tinha sido de 60 km/h.
Tanto o regional, passando pelo sinal 1960 A a 81 km/h, como o intercidades, passando por ele a 130 km/h, iniciaram o processo de travagem, a seguir ao sinal, mas  estariam ambos acima do valor regulamentar (ver correção desta informação nos comentários).
Isso pode indiciar não atendimento dos avisos do CONVEL para redução de velocidade e prática habitual para não atrasar a exploração. Este indicio não poderá ser usado para incriminar os maquinistas porque, a ser prática habitual, será do conhecimento da hierarquia da empresa e assumido por razões de otimização da capacidade da linha.
Se for assim, realçando o “se for assim”, e porque o projeto do CONVEL está correto quando prevê para estas condições a velocidade limite de 30 km/h, julgo ser de recomendar uma revisão dos regulamentos de exploração.
O próprio relatório regista a reação tardia do CONVEL (tardia porque as velocidades estiveram durante muito tempo acima dos limites, embora a diminuir, embora dentro da possibilidade atingir a velocidade  objetivo de 30km/h   antes do sinal S1) a afixar nos displays a nova velocidade objetivo de segurança (0, ou paragem): no caso do regional a 234 m do sinal S1, quando circulava a 36 km/h (segundo os registos); no caso do intercidades, a 431 m do sinal S1, quando circulava a 66 km/h (segundo os registos), portanto perfeitamente a tempo de parar os comboios antes do sinal, no caso de condições de aderência parcialmente degradadas (para uma desaceleração de 0,4 m/s2 pararia 30m antes).
Também tardia foi a atuação da travagem de emergência mesmo em cima da baliza do sinal S1. E o facto é que, de acordo com os registos, a desaceleração melhorou: no caso do regional a desaceleração passou de 0,017 (na prática sem abrandamento da velocidade) antes da travagem de emergência para 0,17 m/s2 depois; no caso do intercidades, passou de 0,076 para 0,7 m/s2.

Esta atuação tardia deverá, salvo melhor opinião, ser publicamente esclarecida com a empenhada participação do fabricante, a Bombardier, de modo a tranquilizar a opinião publica sobre a eficácia da proteção do sistema CONVEL. Deverá nomeadamente esclarecer-se a hipótese de deslocalização (perda da informação correta da posição em que o comboio de encontra) devido às patinagens (rodas bloqueadas ou a escorregar, levando o processador a utilizar pontos quilométricos  e velocidades menores do que os valores  reais, o que atua no sentido contrário da segurança).


Eventuais divergências entre os dados do CONVEL e a posição final dos comboios – Nota: os valores relativos ao posicionamento dos comboios,  às desacelerações e níveis de energia a seguir considerados constituem hipóteses para tentativa de testar a sua plausibilidade comparativamente com os valores registados pelo CONVEL, julgando-se desejável um tratamento computacional cobrindo todas as variáveis e os seus campos de variação de modo a encontrar os valores mais plausíveis.
Assumindo um valor de 170 m para o comprimento de duas UTE (unidade tripla elétrica) que compunham o comboio regional,  da análise das fotografias do acidente retiro que o ponto de imobilização da testa da locomotiva do intercidades após o embate terá sido cerca do PK 198,010 e o ponto de imobilização da testa do comboio regional no PK 198,100.
Segundo os registos que o relatório coligiu, o ponto de imobilização do regional, antes do embate, terá sido no PK 197,959.
Logo, o deslizamento da primeira UTE durante o embate terá sido 198.100 – 197.959 = 141 m.
Por outro lado, os registos dão como ponto de embate o PK 197,782.
Então o deslizamento da locomotiva terá sido, se os registos estão corretos, de 198.010 – 197.782 = 228 metros.
Este valor de 228m parecerá exagerado se se considerar o valor registado pelo CONVEL de uma desaceleração após a travagem de emergência ao sinal  S1 de 0,7 m/s2 (devido às más condições de aderência).
Esta desaceleração corresponde a uma distancia de travagem de 97 m para uma velocidade inicial de 42 km/h e de 138 m para uma velocidade inicial de 60 km/h, valores muito inferiores aos 228m.



Apresenta-se um esquema e uma tabela com desacelerações para 3 hipóteses:
- a dos valores registados pelo CONVEL, deslizamento da locomotiva de 228m (correspondendo ao arrastamento da testa da 1ª UTE desde o ponto de impacto até à imobilização de 141 m)
- a de um deslizamento da locomotiva de 140 m (correspondendo ao arrastamento da testa da 1ª UTE desde o ponto de impacto até à imobilização de 60 m)
- a de um deslizamento da locomotiva de 80 m (correspondendo a um arrastamento nulo da testa da 1ª UTE).

A desaceleração de acordo com os valores registados pelo CONVEL  (deslizamento da locomotiva de 228m) seria muito baixa, da ordem de 0,3 m/s2. Parece mais plausível a hipótese de deslizamento da locomotiva de 140m com uma desaceleração de 0,49m/s2 (impacto a 42 km/h), 0,69m/s2 (impacto a 50 km/h) ou 0,99 m/s2 (impacto a 60km/h).
Admitindo uma desaceleração de 1,1 m/s2 nos instantes imediatamente seguintes ao impacto, justificável pelos testemunhos dos passageiros do Intercidades sobre quedas a bordo, ainda aqui serão mais  plausíveis as desacelerações nos últimos metros de um deslizamento  inferior aos 228m , admitindo melhoria das condições de aderência e eficácia da travagem de emergência (0,07 m/s2 para a hipótese CONVEL;  0,14 m/2 para 42km/h no impacto, 0,46m/s2 para 50km/h no impacto,  0,93m/s2 para 60km/h no impacto, para a hipótese deslizamento da locomotiva de 140m).
Se o raciocínio está correto, o deslizamento terá sido inferior a 228m e a velocidade de impacto ligeiramente superior a 42 km/h.













  Pela análise das posições finais parecerão pouco consistentes os valores registados para os pontos quilométricos notáveis e para as respetivas velocidades, nomeadamente para o ponto e velocidade de impacto.

Estas inconsistências, que na ausência dos dados do SIBAS, apenas se podem considerar nesta fase como dúvidas  a investigar (tal como expresso no relatório) sugerem deficiente funcionamento ou deslocalização do sistema de odometria do CONVEL ou do comboio, não tendo sido suficiente o sistema anti-patinagem /patinhagem  para corrigir as informações incorretas dos pontos quilométricos e consequente deslocalização do CONVEL de bordo.
Notar que o sistema CONVEL é pontual (refrescamento da posição quilométrica apenas nas balizas dos sinais, ficando a correção do processamento a bordo dependente da localização precisa calculada pelo sistema de odometria.
Notar que o sinal 1960 A se encontra numa rampa (suscetivel de provocar patinhagens, facto referido pelo maquinista do regional, iludindo, se o sistema antagonista não conseguir detetar diferenças de velocidade entre rodados, o processador do CONVEL, admitindo em consequência que o comboio se encontra numa posição mais avançada) e o sinal S1 em declive (suscetível de produzir patinagens, iludindo o processador do CONVEL, admitindo que o comboio se encontra numa posição anterior, portanto contra a segurança).
O facto do CONVEL ter registado o inicio da travagem de serviço cerca de 400 m após o sinal 1960 A poderá indiciar a ocorrência de patinhagens antes e depois do sinal 1960 A, não sancionando a passagem pelo sinal à velocidade de 130 km/h, muito superior ao objetivo de 60 km/h do troço anterior.

Demasiados modos de exploração na mesma linha -  Embora seja possível explorar a mesma linha com tráfego de diferentes caraterísticas, isso contribui sempre para aumentar os riscos.
Misturando comboios rápidos com comboios suburbanos , regionais e de mercadorias, haverá sempre a perturbação da marcha dos mais rápidos e a pressão para a recuperação de atrasos.
Acresce que as carateristicas de travagem dos diferentes comboios condicionam a capacidade da linha e a rapidez da exploração (um intercidades tem uma desaceleração de serviço normal de 1,1 m/s2, enquanto um mercadorias poderá ter menos de 0,5 m/s2, embora com velocidades máximas diferentes).
Este facto deveria levar os decisores a, no futuro, não misturarem alta velocidade com serviço suburbano, a pretexto do chavão de aproveitamento ao máximo das infraestruturas e de fazer mais com menos.

Possíveis melhorias:

Perda de aderência - A confirmar-se a perda de aderência mostrada nos registos, dificilmente se poderá evitar um acidente quando se conjugarem outros fatores. Sugiro que especialistas de biologia vegetal estudem a possibilidade de folhas de vegetação ou sementes ou outros resíduos acumulados pelo forte temporal da véspera terem sido triturados pelos rodados até produzirem uma película oleosa.
O facto é que à beira da via, antes do sinal S1, existe abundante vegetação.
É ainda facto que acidente semelhante ocorreu em Paris, numa linha suburbana de supe crfície.  
Poderá combater-se este risco assegurando uma distancia sem vegetação ao lado das vias com cortes periódicos e uma cuidadosa inspeção de via nos comboios noturnos, eventualmente com “raspadores” e detergentes sempre que as condições climatéricas o justifiquem.

Deslocalização – O risco de deslocalização do sistema de proteção automática pode combater-se melhorando a deteção das patinagens e patinhagens, montando os geradores taquimétricos em eixos não motores ou sem travões. Em material circulante novo, especificar o sistema opto-eletrónico de leitura ótica dos carris, imune ao escorregamento das rodas sem aderencia.
Dado que a localização do CONVEL é atualizada à passagem por cada baliza de sinal, o risco de deslocalização baixa se se aumentar o numero de sinais e de balizas, tentando aproximar um sistema de controle pontual, como o CONVEL, dum sistema contínuo ou quase contínuo (de atualização do posicionamento permanente ou quase permanente)

Introdução de uma distancia de segurança (overlap) – Trata-se de um reforço da segurança dada pelo alarme e sancionamento pelo CONVEL da ultrapassagem da velocidade limite do troço anterior e da curva de travagem normal que leva à velocidade objetivo do próprio troço.
Tem o inconveniente de aumentar a distancia entre os comboios na linha, e portanto de reduzir a capacidade da linha, introduzindo uma distancia de proteção entre um sinal (por exemplo o S1) e um novo sinal antes; a distancia de segurança antes de um sinal  (por exemplo, o S1) nunca deverá ser ocupada por um comboio enquanto o comboio precedente não libertar a distancia de segurança a seguir ao sinal (por exemplo, o S1).
Essa distancia, considerando uma desaceleração de 0,4 m/s2 e uma velocidade de 72 km/h, será de 500m.
No caso de Alfarelos, esse sinal estaria 1200m depois do 1960 A e 500m  antes do S1; após a ultrapassagem do sinal S1 pelo regional, o estado dos sinais seria:
sinal antes do 1960 A -------------------  amarelo intermitente (objetivo 60km/h)
sinal 1960 A  -----------------------------  amarelo fixo (objetivo 30 km/h)
novo sinal --------------------------------  vermelho
S1  ------------------------------------------  vermelho

Disposições regulamentares – Propõe-se o fim da autorização de marcha à vista, quer em condução manual, quer protegida por ATP, quer em condições normais de exploração, quer em situação degradada, até ao obstáculo na  linha ou até ao sinal que protege o circuito de via onde se encontra o obstáculo. Isto é, propõe-se que a autorização, de comunicação registada e devidamente testemunhada por terceiro, e presencial por esse terceiro junto dos aparelhos de via se avariados, seja dada apenas até a um ponto quilométrico a uma distancia de segurança antes do sinal ou do obstáculo que abranja eventual escorregamento.

Seguimento do relatório preliminar – Para além do seguimento indicado pelo próprio relatório, convirá esclarecer as condições dos sistemas de travagem das carruagens dos dois comboios. Considero imprescindível que os fornecedores Siemens (autómato de controle SIBAS) e Bombardier (CONVEL) participem no esclarecimento das questões com a análise interpretativa dos dados registados e de eventuais anomalias ou insuficiências. Sugiro igualmente participação de universidades, com utilização de métodos computacionais para teste de hipóteses múltiplas, na análise dos pontos quilométricos, velocidades e energias, e de institutos de validação de segurança ferroviária relacionada com o acidente.



Mais informações sobre o CONVEL e sistemas ATP de proteção automática da marcha de comboios:

http://www.railway-technical.com/sigtxt3.shtml


PS em 9 de fevereiro de 2013 -       A atenção dos meios de comunicação social sobre o acidente de Alfarelos esmoreceu entretanto.
Aliás, os descarrilamentos na primeira semana de Fevereiro na Beira Alta, em Algés e em Caxias desviam a atenção pública pela diferença das circunstancias.
A memória dos riscos que se correram em Alfarelos, e em toda a linha do Norte, vai-se diluindo.
No subconsciente da comunidade ficará a desconfiança do sistema automático de proteção, ou de um comportamento de excesso de confiança do pessoal da CP, ou eventualmente de uma qualquer falha desde o projeto à  manutenção, mas que já passou, foi um caso raro, nunca tinha acontecido, será como os terramotos, tão cedo não volta a acontecer.
Alguns apelarão ao castigo exemplar, provavelmente de inocentes.
Ignoramos se uma equipa mais numerosa de operadores no centro de comando operacional, ou no posto de sinalização de Alfarelos, permitiria um atendimento mais rápido da chamada do maquinista do regional e um aviso por fonia ao maquinista do Intercidades.

Entretanto a comissão de inquérito prosseguirá os seus trabalhos, não se sabe bem se com a colaboração franca dos fornecedores dos equipamentos de segurança e do material circulante, a Bombardier e a Siemens (em elevado grau necessária para esclarecer as hipóteses de deslocalização e atuação tardia do CONVEL), provavelmente em ambiente de secretismo, até a um relatório final, que se deseja conclusivo, mas que também provavelmente não merecerá grande destaque na comunicação social, por já não ter oportunidade (melhorar as condições de segurança, saber porque acontecem acidentes, não terá oportunidade?).
Ignoramos e receamos que o inquérito não venha a esclarecer se houve ou não contribuição de medidas de otimização de quadros de pessoal na operação ou na manutenção para o acidente.
Não ficaria bem, numa altura em que o senhor secretário de Estado dos transportes se orgulha de ter atingido o equilíbrio operacional à custa da diminuição dos quadros de pessoal (os postos permanentes de uma empresa pública de transportes têm este defeito: cada posição de trabalho exige 5 profissionais; 3 para cobrir os 3 turnos, mais um para férias e folgas e mais 1 para doenças e absentismo).

Mas esquecer acidentes não é a mentalidade dos técnicos de segurança e de análise de riscos das entidades de investigação de acidentes como o NTSB - National Transportation Safety Board  (http://www.ntsb.gov/ ) nos USA (o avanço das investigações é documentado publicamente; por exemplo, em 1 de fevereiro foi divulgada a sétima atualização da investigação sobre as baterias de lítio que explodiram no Boeing 787; são emitidos avisos públicos de novas atualizações através do Twitter), ou o RAIB – Rail Accident Investigation Branch  (http://www.raib.gov.uk/home/index.cfm ) na Inglaterra (“to improve safety, not to establish blame”).
Isto sem falar na diretiva europeia 2004/49/EC  (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2008:345:0062:0067:EN:PDF  ) que obriga à existência do GISAF.

Resta aos cidadãos irem colocando hipóteses, aventar pistas de investigação possível, sugerir melhorias no projeto ou na instalação dos sistemas de proteção, sem com isso pretenderem culpar seja quem for, seja do que for, mas apenas isso mesmo, melhorar o nível de segurança das pessoas.
 Foi o que tentei no presente”post”.
Mas convem sublinhar bem que não deve perder-se a confiança no sistema CONVEL.
 O projeto cumpre os requisitos de segurança dentro das carateristicas de um sistema pontual (em que a informação da localização é processada a bordo a partir da atualização à passagem por balizas asociadas  aos sinais luminosos ), desde que, mesmo nas condições do acidente, os comboios respeitem (o que não foi o caso, indiciando que é prática corrente, do conhecimento das direções para fins de recuperação ou cumprimento de horários) a velocidade objetivo de 60km/h no penúltimo troço antes do sinal vermelho.
O regional saiu desse troço a 81km/h e o Intercidades a 130km/h, valores do relatório preliminar a confirmar com os registos SIBAS dos comboios.
Apesar das eventuais deslocalizações e atrasos de atuação do CONVEL, a essas velocidades teria sido possível “segurar” o Intercidades, apesar da fraca aderência roda-carril de modo a ultrapassar o sinal proibitivo a 36km/h e a parar antes do regional graças à travagem de emergência tardia no sinal proibitivo (0,7m/s2 segundo os registos do CONVEL).
Como referido no “post”, o nível de segurança pode reforçar-se introduzindo o overlap ou distancia de segurança a seguir a um sinal proibitivo (isto é, uma colisão passará a implicar sempre a passagem por dois e não um sinal proibitivo) e revendo os regulamentos de exploração para melhor  cumprimento dos limites de velocidade e para não autorizar a marcha à vista até ao obstáculo (mas  até uma distancia de segurança anterior).

Acrescento agora uma sugestão para inclusão no inquérito de cálculo computacional de hipóteses de distribuição da energia cinética pelos componentes da colisão, na expetativa de obter valores plausíveis para as coordenadas do ponto de impacto e sua relação com os registos espaço-tempo do CONVEL e do SIBAS.


Considerando 260 ton para a massa do Intercidades (incluindo a locomotiva de 90 ton) , para uma velocidade no ponto de impacto de 42 km/h ter-se-ia uma energia cinética (E = mv2/2) de 18 MJ.
Essa energia cinética decompor-se-á em três termos correspondentes ao valor do deslizamento da locomotiva desde o impacto até à imobilização nos seguintes troços:
A - comprimento correspondente ao impacto com a absorção do choque, deformação e encavalitamento da 6ª carruagem do regional, mais
B - percurso de arrastamento das 5 carruagens do regional até ao descarrilamento da 5ª e 4ª carruagens, mais
C - percurso da locomotiva sem a resistência das carruagens do regional.

Para o troço A estimo grosseiramente um comprimento de 30m, correspondendo ao comprimento da carruagem, e uma resistência ao movimento da locomotiva equivalendo a uma energia (E = F.e) de (40/2) ton x 30m <> 6 MJ, sendo F correspondente a metade do peso da carruagem.
Pela análise das fotografias com a imobilização da  locomotiva, estimo que o percurso C tenha sido de 50 m (um pouco  menos do comprimento de duas carruagens); admitindo a desaceleração neste percurso C do registo do CONVEL  de 0,7 m/s2 , a velocidade a 50m antes da imobilização será de cerca de 30km/h, a que corresponde uma energia cinética de cerca de 9 MJ
A energia absorvida pelo troço B seria igual à energia cinética total menos a soma das energias absorvidas em A e C:
18 – (6 + 9) = 3 MJ
Dado que o percurso B seria de 228 – (50 + 30) = 148m , à energia cinética dissipada no troço B corresponderia uma força resistente oposta pelo comboio regional parado de 3 MJ /148m = 2 ton (o que  parecerá pouco, admitindo que o regional, de massa estimada 220 ton, estava parado, indiciando que os valores registados pelo CONVEL para o ponto de impacto de deslizamento do Intercidades de 228 m  e de velocidade de 42 km/h serão, o primeiro maior e a segunda menor do que na realidade).
                              
A sugestão é então a de testar vários valores para os comprimentos, desacelerações e resistências à deformação e ao movimento de modo a obter um conjunto de valores mais plausíveis, confirmando ou não os registos de velocidade, espaço e tempo do CONVEL.


PS em 25 de fevereiro  -  consultados os sites do IMT, REFER e CP, verifico que não há informações acrescentadas à divulgação do relatório preliminar sobre o acidente de Alfarelos. Não parece assim seguir-se o bom exemplo do NTSB ou do RAIB.
Ao reler as noticias do acidente, reparo que alguns passageiros do intercidades reportaram solavancos acentuados momentos antes do embate.
Uma hipótese que poderá explicar estes solavancos poderá ser a atuação do ABS, com sucessivos apertos e alívios dos freios em função da informação recebida dos sensores de anti-patinagem e anti-patinhagem.
Este é mais um exemplo, como sublinhado no relatório preliminar, da necessidade de levantar o registo do autómato SIBAS de bordo, no regional e no intercidades, para comparação das variáveis do espaço e velocidade ao longo do percurso do acidente, dadas pelo CONVEL e pelo SIBAS.
Igualmente é necessário confirmar os valores da desaceleração e se o esforço de travagem e a atuação do ABS foram adequados.
Mantem-se a duvida sobre o atraso de atuação do CONVEL e a hipótese de deslocalização (informação errada da posição).
É por isso indispensável para a credibilidade dos sistemas de segurança que os fornedores Bombardier e Siemens participem efetivamente no inquérito e na divulgação dos resultados.
Continuamos assim a aguardar.

PS em 27 de fevereiro de 2013 – o sindicato dos ferroviarios manifestou preocupação por não haver conhecimento de resultados do inquérito subsequente ao relatório preliminar (em que a participação dos fornecedores Bombardier e Siemens é essencial para o esclarecimento), mantendo a desconfiança sobre o efeito dos cortes na manutenção (não se afirma que a causa foi esta, mas deseja-se que o inquérito esclareça se houve ou não contribuição dos cortes na manutenção para o acidente).
Convirá manter-se a pressão sobre os decisores para o esclarecimento.
O senhor secretário de Estado dos transportes informou que brevemente será nomeada a direção do GISAF.
Ficamos à espera.
Entretanto junto o endereço de um fórum de discussão em que participam maquinistas e que contem informação útil sobre o acidente, incluindo o testemunho de alguns deslizamentos.

De lá retirei também um vídeo didático inglês sobre a problemática da travagem, incluindo uma referencia à contribuição da vegetação para diminuição das condições de aderência:

PS em 18 de março de 2013 - assinalo a publicação pelo IMT de um comunicado em 3 de março informando que prosseguem os trabalhos de investigação do acidente de Alfarelos e dos descarrilamentos da linha de Cascais. 
http://www.imtt.pt/sites/IMTT/Portugues/Noticias/Paginas/ComunicadoConjuntoInqu%C3%A9ritoaosAcidentesFerrovi%C3%A1rios.aspx

Aplaudo a correção da atitude, mas continuo descrente dos bons resultados a atingir (seria muito bom eu estar enganado) e não posso concordar com a afirmação "estão garantidos todos os requisitos de segurança" .
"Está garantido um mínimo de requisitos de segurança" estaria, salvo melhor opinião, mais correto. 

PS em 7 de junho de 2013 - mantem-se a ausencia de divulgação do relatório final; não há porém a certeza de que ele exista ou contenha o esclarecimento das questões da deslocalização do CONVEL, da eventual necessidade de rever o regulamento e da participação da Bombardier e da Siemens na investigação. Este comportamento indicia uma atitude cultural intoleráve contrastando com o respeito pela opinião pública do NTSB e do RAIB. À boa maneira portuguesa, espera-se que tudo se esqueça e se atribua ao temporal ou a causas fortuitas de rara ocorrencia.

 




 

7 comentários:

  1. O texto neste Blog vale mais em conteúdo e interesse do que o futuro relatório final da CP e do IMTT juntos.
    O desnorteamento monetário cerebral neste país está a afectar a segurança a todos os níveis da engenharia.
    Se os mortos por negligência alheia pudessem actuar, haveria muito vivo que iria passar a morto.
    Mais um país a entrar em coma profundo....

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  2. «Tanto o regional, passando pelo sinal 1960 A a 81 km/h, como o intercidades, passando por ele a 130 km/h, iniciaram o processo de travagem, a seguir ao sinal, mas estariam ambos acima do valor regulamentar.»

    regulamentarmente errado


    adomi600@hotmail.com

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    1. Obrigado pela observação.
      Efetivamente, o relatório preliminar não dá o sinal anterior ao 1960 A como amarelo intermitente.
      Dado que esse sinal está a 400m do 1960 A , portanto dando tempo ao intercidades se encontrar muito antes daquele no instante em que o regional ultrapassou o sinal S1, supus que se encontrasse amarelo intermitente para dar ao intercidades o envelope das velocidades objetivo para a aproximação em segurança do S1.
      Se não é assim, se a velocidade objetivo antes do 1960 A quando o S1 está vermelho é superior aos 60km/h do amarelo intermitente, e se, como diz o relatório, é “habitual” o intercidades iniciar a travagem já na descida para Alfarelos cerca de 400m depois do 1960 A, então eu insisto na conveniência de se rever a regulamentação.
      Fundamentalmente porque não existe overlap de proteção após o S1 (a haver, teria este de ser recuado), isto é, não é cumprida a regra que diz que entre um comboio parado na linha e o que vem atrás deve haver pelo menos 2 sinais vermelhos.
      Não existindo esta regra, é essencial que o “envelope” dos diagramas de velocidade de aproximação seja mais restritivo do que os procedimentos “habituais” de inicio de frenagem.
      Conviria ainda que o inquérito esclarecesse a discrepância de velocidades registadas pelo CONVEL no regional, iniciando a 91,5km/h a travagem normal 208m antes do 1960 A num troço a subir, mantendo os freios, passando pelo 1960 A (e refrescando a sua odometria) a 81km/h, para depois aumentar a velocidade até 94,5km/h.
      O que suscita a duvida sobre a correta atuação do dispositivo anti-slip e anti-skip que fornece a informação ao CONVEL, isto é, sobre a deslocalização do processador de bordo.
      Cumprimentos.

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    2. «isto é, não é cumprida a regra que diz que entre um comboio parado na linha e o que vem atrás deve haver pelo menos 2 sinais vermelhos.»

      o código de sinais do cantonamento automático na rede ferroviária nacional é diferente do código no ML

      «Se não é assim, se a velocidade objetivo antes do 1960 A quando o S1 está vermelho é superior aos 60km/h do amarelo intermitente»

      sim, é regulamentarmente permitido

      adomi600@hotmail.com

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    3. Obrigado pela confirmação. Os códigos são de facto diferentes e não têm necessáriamente de ser iguais. Poderá parecer impertinencia da minha parte manter a sugestão de alteração dos regulamentos ou que pretendo ser detentor de verdades absolutas, mas penso que não, apenas sugiro a introdução de medidas mais restritivas no sentido da segurança. Embora, de acordo com os critérios da norma 50126, não sendo para mim admissível, para outros pode ser admissivel suportar os riscos do atual regulamento, considerando a frequencia e as consequencias dos acidentes.

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  3. O relatório preliminar publicado pelo IMTT não diz que o sinal anterior ao 1960A estaria amarelo intermitente à passagem do comboio IC. Recomendação: inteirar-se melhor sobre o código de sinais. Conselho: não conjecturar sobre eventuais práticas de excesso de velocidade por parte dos maquinistas, tanto mais que aparenta ter conhecimento da função do convel. Sugestão: não se precipitar sobre alegadas deficiências do convel, a que as infelizes conclusões do relatório preliminar parecem induzir.

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    1. Obrigado pela observação.
      Efetivamente, o relatório preliminar não dá o sinal anterior ao 1960 A como amarelo intermitente, apenas afirma que o 1960 A estava amarelo fixo, “pedindo” ao maquinista que reduzisse para 30km/h, se interpreto bem o código de sinais.
      Penso que entrar a 130km/h num troço de circulação de precaução com velocidade objetivo de 30km/h e iniciar a redução de velocidade 11 segundos e 400m depois (de acordo com os registos do CONVEL) não é uma situação segura porque não existe overlap a proteger o sinal seguinte vermelho (apesar de, em circunstancias normais, existir espaço suficiente para a desaceleração até à paragem).
      Daí a minha sugestão de revisão regulamentar.
      Não pretendi responsabilizar os maquinistas por excesso de velocidade, antes acentuei que, a ser prática habitual, ela é validade pela hierarquia da empresa.
      Não me compete, efetivamente, atribuir deficiências ao CONVEL.
      Mas julgo poder colocar hipóteses, no espírito das entidades de investigação de acidentes que referi (contrastando com o secretismo dos inquéritos como de Caxias de maio de 2012, e até dos resultados dos ensaios com os carris molhados recentemente feitos em Alfarelos, pese embora a extrema dificuldade de reproduzir todas as condições do acidente).
      E essa hipótese, perante a atuação tardia do CONVEL (em termos de afixação da velocidade objetiva “0” e da atuação da travagem de emergência), é a de deslocalização do processador de bordo por falha do dispositivo anti-slip e anti-skip que fornece a informação ao CONVEL.
      Não afirmo que seja a única hipótese, mas penso que deve ser esclarecida.
      Acresce que o CONVEL é um ATP pontual, com refrescamento da odometria à passagem pela baliza do sinal, ficando a verificação da submissão da marcha do comboio às curvas de espaço e velocidade a cargo do processador de bordo no intervalo entre balizas.
      E um sistema pontual não pode ter o mesmo nível de segurança de um sistema contínuo sem que sejam aplicadas medidas restritivas como “overlaps”, ou aumento do número de balizas, ou restrição do “envelope” das velocidades.
      Era o esclarecimento destas questões, sem pretender, repito, retirar confiança ao CONVEL, que eu gostaria de ver com a colaboração do fabricante Bombardier e a informação do IMT, CP e REFER.
      Cumprimentos.

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