É imperdoável eu estar a usar como tema deste texto o nome do programa de Vitorino Nemésio. Gostava de o ouvir falar, saltando de tema em tema. É pretensioso da minha parte tentar coisa parecida.
Mas talvez Vitorino Nemésio concordasse comigo que , por vezes, é importante (do meu ponto de vista, claro) fazer uma coisa imperdoável e tendencialmente pretensiosa como esta.
O texto é motivado pela pequena história ocorrida com os gémeos siameses que o Hospital da Estefania não chegou a operar porque tinham um coração comum.
Os gémeos voltaram para Luanda e o DN foi ouvir o cirurgião Gentil Martins, atualmente na situação de reforma.
O DN fez o que os lusitanos costumavam e costumam fazer.
Elegem quem acham que sabe dum assunto e consultam-no.
Não fazem isso por mal nem para privilegiar grupos ou pessoas, até porque não são especialistas.
Fazem-no porque a comunidade não se soube organizar de modo a que em cada especialidade se desenvolvam equipas que contenham em si diversidade e saibam debater os assuntos de forma aberta e centrada nos objetivos, e que se saibam coordenar entre todas as especialidades.
Deu-se o caso que a equipa que analisou o caso dos gémeos tomou a decisão sem pedir uma opinião a Gentil Martins.
Não era obrigatório, nem necessário, mas só houve em Portugal, até agora, separações de gémeos siameses realizadas por equipas dirigidas por Gentil Martins.
Seria então natural que os cirurgiões convidassem o colega sénior para dar um parecer.
Só um parecer, não vinculativo… apenas para que, quem estivesse com a responsabilidade da decisão final, ouvisse argumentos a partir de uma perspetiva diferente; sem que isso significasse que os argumentos fossem melhores; num grupo deve haver diversidade, para que a opinião dominante possa ser cotejada com outras; mesmo que uma opinião contraditória não deva ser adotada, o simples facto de existir estimula a fundamentação da dominante e fortalece-a.
Sem que isso significasse defender feudos em que só o senhor feudal pudesse opinar. Ou quintas, como se diz na versão mais burguesa e liberal que sucedeu ao feudalismo.
Mas não, não faz parte da cultura portuguesa debater as questões abertamente.
Lembro-me de ter acontecido comigo; fiz parte do grupo inter-disciplinar que em 1976 estudou e elaborou a solução de substituição do sistema de venda de bilhetes nas cabinas de bilheteira pelo sistema de canais abertos com obliteração dos bilhetes à entrada . Dezoito anos depois, a industria francesa tinha desenvolvido os canais de acesso com portas automáticas controladas por cartões com “chip” sem contacto e necessitava de mercado internacional. Ninguém se lembrou, no extenso grupo que elaborou a solução adotada, de me pedir uma opinião; e as posições que prevaleceram foram monocromáticas, cristalizando em torno de ideias (sobre o fenómeno da cristalização ou polarização de ideias dominantes em grupos ver a sabedoria das multidões de James Surowiecky) que a realidade veio a demonstrar não serem realizáveis em segurança, como, por exemplo, ter os átrios das estações desguarnecidos de pessoal com os canais de acesso, com portas automáticas, operacionais, ou não conseguirem implementação credível, como a contagem origem –destino dos passageiros (devido à pulverização de títulos de transporte e à necessidade de ter os canais abertos quando não há guarnecimento de pessoal).
Dir-se-ia que numa sociedade equilibrada interessaria ouvir as opiniões dos seniores, por mais impressivo que seja o progresso técnico que rapidamente desatualiza os técnicos (embora não conste que o progresso técnico tenha mexido muito nos teoremas e nos princípios que são a base de qualquer técnica, e que por obedecerem ao método científico estão sempre prontos a ser sujeitos ao referendo e à contestação dos especialistas).
Dir-se-ia que Newton tinha razão em requerer a autoridade científica dos que o precederam para poder ver mais longe, e que isso só era possível porque se tratava de gigantes nos quais se apoiava.
Eu também achava esta frase de Newton muito bonita, até que me explicaram que originalmente estava contida numa carta para um seu rival na academia das ciências, o astrónomo Halley, que tinha uma estatura de quase anão.
Donde eu concluo que nos tratamos mal uns aos outros, mesmo se somos grandes figuras, quando o objetivo essencial a atingir, que é o bem estar das comunidades e o progresso científico, técnico e social, fica em segundo plano.
Não ter falado a Gentil Martins foi tratá-lo mal.
O objetivo essencial era separar as crianças.
De modo que eu, para afastar estes tristes pensamentos, vou tentar socorrer-me de uma metáfora mais técnica, para defender a utilidade dos seniores, e longe de mim a ideia de querer tratar mal alguém, apenas expor a ideia.
Nos anos finais 40 do século passado, toda a industria aeronáutica estava apostada em ultrapassar a barreira do som. A força aérea norte-americana teve meios para isso e conseguiu-o.
O avião que ultrapassou a barreira do som pela primeira vez (existe um filme de Hollywood romanceado, de que eu destaco o ideal da mulher norte americana fada do lar) tinha de ser lançado de bordo de um avião cargueiro porque era movido por foguetes.
Era o Bell X-1, pilotado por Chuck Yeagar, e foi batizado como Glamorous Glennis (a tal fada do lar).
O avião cargueiro escolhido foi um B-19 superfortaleza, com hélices, modelo Boeing de bombardeiro na segunda guerra mundial, com o compartimento das bombas adaptado a berço do avião-foguete.
Foi o sénior que permitiu ao júnior de elevado potencial lançar-se e atingir o objetivo.
Curioso terem escolhido um sénior com hélices, quando já existia o B-52, o bombardeiro quadri-reator de jacto, irmão gémeo do Boeing 707.
Curioso, acreditarem nos seniores.
Devo esta história à maravilhosa facilidade que a Internet põe ao nosso dispor; uma base de dados com as efemérides de cada dia do ano, para que um estimado colega me chamou a atenção, perguntando-me de supetão, no dia 14 de outubro: sabe qual é a efeméride aeronáutica de hoje?
Ver em http://en.wikipedia.org/wiki/October_14
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