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Oiço na Antena 2 uma entrevista de Maria Barroso e fico nostálgico.
Maria Barroso era atriz e dizia poesia em espetáculos de índole cultural promovidos contra o anterior regime.
E recordo uma apresentação do Orfeão Académico de Lisboa, em 1967, na sala da pró-Associação de Estudantes de Medicina, no Hospital de Santa Maria.
Maria Barroso costumava intervir na segunda parte de espetáculos em que na primeira atuava o Coro da Academia dos Amadores de Música, com Fernando Lopes Graça e as suas canções heróicas. Mas naquele dia foi com o Orfeão Académico de Lisboa, que ensaiava todas as semanas num dos anfiteatros do Instituto Superior Técnico, que se apresentou.
Cantaram espirituais negros, canções de libertação.
Aquela com quem casei e a irmã eram solistas. Recordo o orgulho com que a que foi depois minha sogra estava ali não só para assistir, mas para tomar conta das filhas, que nessa altura as meninas não podiam desviar-se dos seus caminhos habituais sem que fossem acompanhadas.
Por isso estou nostálgico.
Maria Barroso declamou a Nossa Senhora da Apresentação, de Álvaro Feijó:
O altar as vagas
o dossel a espuma!
Missas rezadas pelo vento,
ora pelos fiéis defuntos que se foram
noutras vagas.
Ora pelas barcaças que, uma a uma,
buscaram as sereias na distância
e se foram com elas.
Sobre o altar, entre círios, que não são
os círios murchos das igrejas velhas
mas o lume de estrelas,
ELA,
Nossa Senhora da Apresentação.
Aquela
que não tem mantos da cor do céu,
nem fios d'oiro nos cabelos,
nem anéis nos dedos;
aquela
que não traz um menino nos seus braços
porque os seios mirraram
e já não têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o corpo negro e sujo
e os ossos a saltar
da pele
e dos rasgões da saia e do corpete;
Nossa Senhora da Apresentação
da Beira-Mar,
que tem capelas
em cada peito de marinheiro,
que morre e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos engaços do sargaceiro
ou nas gamelas do pilado
e palhabotes da Terra Nova.
Aquela
a quem todos adoram.
Dos meninos
feitos nos intervalos das campanhas,
aos bichanos que limpam de cabeças
e tripas de pescado
as muralhas do cais.
O dossel a espuma.
O altar das vagas
— e que altar enorme! —
Entre círios de estrelas,
Nossa Senhora da Apresentação
e Justificação
— a Fome!
Era essa fome que motivava a luta unida da nossa adolescência com a maturidade de Maria Barroso contra a política de restrições económicas de Salazar, contra a opressão de um povo, contra o condicionamento industrial, contra a guerra colonial.
Desatenta, a polícia política faltou ao espetáculo.
Bem me lembro de que noutras ocasiões não faltou e o espetáculo não se realizou…
Quem nos diria que as pobres ideias de repressão política e económica seriam vencidas 7 anos depois, mas que 43 anos depois ainda teriam de morrer pescadores em Portugal, em dias de tempestade de inverno ou de marés vivas de primavera, precisamente por causa da fome, quando deviam os peixes estar em defeso …
País dependente da Nossa Senhora da Apresentação...
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