segunda-feira, 17 de maio de 2010

Religo VI - Meditação sobre Spinoza, com um pedido de desculpas por estar a pô-lo a falar assim

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Subo a Prof.Vieira de Almeida antes de virar para a Prof. Pulido Valente, a caminho de Carnide. Ficam uns a atapetar o pavimento, junto do passeio, e vêm outros ao meu encontro, suspensos do ar, os grânulos de pólen caídos dos plátanos e dispersos pelo vento, à procura dos gâmetas femininos. Serão 2 milhares de grânulos por m3, anemofilia pura.

Ainda me entopem o filtro do pólen do carro.

Numa associação de ideias errática e aleatória, imagino que Spinoza está a contemplar a cena, com o seu ar descuidado, e me chama.

Spinoza era filho de portugueses da Vidigueira, mas não era português.

As dificuldades de compreensão e de apreensão de relações de causa e efeito e de correlações estatísticas impediram o rei de Portugal de resistir a uma chantagem da Lucrécia Bórgia da península ibérica (Isabel de Castela) e expulsou as famílias judaicas.

Expulsou alguns dos melhores de nós.

Foi muita pena, qualquer pessoa que goste da sua terra só pode ter pena por uma coisa destas, por uma cultura tão falhada.

Passava-se isso no fim do século XV.

A família de Espinosa não foi expulsa. Preferiu contemporizar e converter-se ao cristianismo. Mas o ambiente em Portugal era mau e, no princípio do século XVII, toda a família partiu.

E foi assim que Spinoza nasceu na Holanda, onde não seguiu a profissão de rico mercador do avô e do pai, preferindo dedicar-se à filosofia e, para ganhar a vida, ao polimento de lentes.

- Sabes, diz-me ele, é como se estivéssemos imersos num líquido reprodutivo e passassem por nós os gâmetas masculinos e femininos suspensos do líquido, como peixes num aquário, à espera do seu encontro com consequências.

- É como se nós fossemos parte indissociável de um ser universal, essencial e substancialmente universal.

- Tu o dizes. Não é necessária nenhuma entidade externa para ir misturando os elementos mais infinitesimais uns com os outros, em permanente evolução. Aliás como seria possível ser-se externo a si próprio? Eles misturam-se naturalmente.

- Como conseguiste chegar lá, tu que nunca tinhas ouvido falar no big-bang nem dispunhas de nenhum acelerador de partículas para pesquisar as cujas elementares…que a evolução segue as suas leis sem um projeto pré-determinado…

- Nem eu sei dizer-te. Nem eu nem ninguém. Mas já Platão tinha deduzido isso. Que os átomos eram eternos. Não precisaram de ser criados. Só que os átomos afinal são mais elementares do que Platão pensava.

- Logo, o mistério de tudo isto é só por si um mistério e não precisa de ser explicado. Não precisamos de inventar um relojoeiro para o relógio porque depois tínhamos de inventar um pai e uma mãe para o relojoeiro. Nunca tiveste medo de te mandarem para a fogueira, com essas ideias monistas e panteístas, de que é a própria Natureza que contem o seu princípio e fim, que o que é eterno são as partículas elementares?

- Confesso; se os meus pais tivessem ficado em Portugal, confesso que teria medo. Mesmo assim, na Holanda, tive de mudar o meu nome, Baruch, para Benedictus, e deixei as minhas conclusões para serem publicadas depois da minha morte. Não ia hostilizar os protestantes calvinistas da minha Holanda natal, tão ciosos da literalidade da sua bíblia, nem os meus amigos da sinagoga portuguesa de Amsterdão, claro.

- Ai Spinoza, Spinoza, como te agradeço essas palavras, e como estava à espera que a adesão à União Europeia nos tivesse aberto mais as ideias, nos tivesse aproximado mais das mentes do norte. Que vocês aproveitassem agora a liberdade de movimentos para nos virem ajudar, que fizessem o movimento inverso à expulsão.

- Como se fossemos gâmetas do mesmo organismo, não era? Dá tempo ao tempo. É a evolução natural.

E lá ficou Spinoza, de cabelo desgrenhado, no entroncamento da Prof. Vieira de Almeida com a Prof. Pulido Valente, na placa triangular separadora do transito de onde 3 plátanos majestosos, quiçá expostos à fúria destruidora das máquinas da câmara por serem majestosos e alergénicos, continuavam a expedir os seus grânulos de pólen.

 
 
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