A designação da entidade que convocava a reunião pareceu-me prolixa e decadente – secretaria de estado da presidencia do conselho de ministros para o desenvolvimento económico.
Mas essa convicção era natural porque eu ainda não tinha 30 anos e a revolução de Abril ia apenas no seu terceiro mês.
A diplomacia da nascente democracia portuguesa tinha centralizado as ofertas de apoio disponibilizadas por vários países amigos.
Países amigos só do chamado ocidente, porque do lado de lá da cortina de ferro não parecia haver interesse num compromisso declarado.
Não era a sua zona de influencia.
Mas do lado ocidental parecia formar-se uma espécie de plano Marshall.
À secretaria de estado parecera ouvir falar numa oferta de cerca de 30 milhões de contos, o que a preços de 2010 seria um montante da ordem de 7500 milhões de euros.
As embaixadas dos USA, UK, França e Alemanha tinham informado a secretaria de estado de que pretendiam subsidiar investimentos até aquele montante, eventualmente a fundo perdido, como medida de boa vontade, de apreço pela opção pela democracia e, claro, como oportunidade de fornecimento de bens e serviços, que o mesmo é dizer, de apoio às industrias dos próprios países.
A secretaria de estado convocou várias entidades suscetíveis de absorver aquela verba para uma reunião na sua sede, na Av.D.Carlos, numa suave manhã de fim de Julho de 1974.
O convite chegou ao Metro na semana anterior, à sua direção de desenvolvimento.
Terá sido uma incorreção formal não o ter enviado para a administração, mas o prestígio do diretor, militante antifascista, técnico dominando toda a problemática dos transportes coletivos, levou alguém na secretaria de estado a enviar-lhe o convite diretamente.
O diretor chamou os seus dois novos estagiários e disse-lhes que, estando os outros colegas de férias e entrando ele de férias na semana seguinte, que S.Martinho do Porto e as reuniões do partido socialista em vilegiatura já esperavam por ele, teríamos de ser nós os dois a ir à reunião.
Eu agradeci a prova de confiança que o diretor nos dava, enquanto o meu jovem colega Galaz, minhoto dos quatro costados apesar do apelido galaico, deixava transparecer algum nervosismo.
Passados todos estes anos, aprecio muito a atitude do diretor, confiando a dois jovens a representação do metropolitano e a apresentação dos seus planos.
Era verdade que por todo o país se começava a aceitar a mudança.
Os pontos de vista do anterior regime, enfeudado à política do condicionamento industrial, favorecendo a meia dúzia de famílias a que se podia chamar os donos de Portugal, e condicionado pelas guerras coloniais que impediam o desenvolvimento económico e cultural e a integração plena na cena internacional, perdiam força perante o levantamento de todo um povo em processo de democratização.
Para o melhor e para o pior, esse processo.
E para o melhor era abrir os caminhos dos investimentos que dinamizassem a economia, abrir as universidades técnicas à juventude sacrificada nas guerras e nos constrangimentos educacionais, acabar com a mortalidade infantil e o analfabetismo (indicadores em 1971 e 2009: mortalidade infantil 5,7% e 0,3%; longevidade masculina 64 e 76 anos; PIB per capita em relação à média europeia 50% e 78%), deixar a criatividade e a abertura de espírito avançar. (Para o pior, deixar que a dificuldade de organização da nossa maneira de ser portuguesa e que este vício danado que temos de permitir aos espertos assenhorearem-se da iniciativa, fossem degradando a frágil democracia).
O diretor conduzia, por esse tempo, os contactos com um grande consultor alemão, contratado no âmbito das tentativas de liberalização económica do regime anterior (a primavera marcelista) que, no plano politico, tinham sido boicotadas pelo poder económico protegido e pelo poder militar dos generais.
Dois anos antes tinha sido inaugurada a extensão do metro da estação Anjos até Alvalade e tinha-se lançado um concurso para apresentação de propostas para a linha numero 2, de Algés ao Rossio e à Calçada do Grilo.
Era esse o esquema geral da rede de acordo com os planos iniciais do metro.
Prevendo-se o crescimento populacional da cidade e o crescimento económico, uma vez que ainda não tinha ocorrido a crise do aumento dos preços do petróleo de 1973, o governo da altura pediu à administração que arranjasse um consultor para apresentar um melhor plano de expansão do metro.
As reuniões com os técnicos alemães eram interessantíssimas.
Estavam estabelecidos num prédio recente perto do Marquês de Pombal.
Tinham sempre estudada a documentação técnica com o existente que lhe tínhamos fornecido.
Tinham visitado as instalações e sabiam como funcionavam as coisas.
Tinham diversos especialistas aplicando as técnicas de estudo das redes urbanas de transporte e produzindo extensos relatórios em cada especialidade, tudo subordinado ao objetivo de encontrar a melhor rede de metropolitano para a cidade, dentro de um orçamento de 10 milhões de contos (2.500 milhões de euros, a preços de 2010) para a construção de mais 15 km de rede.
Mas ficavam encantados com o brilho e a capacidade de procurar e de improvisar soluções do nosso diretor, e isso não admirava, porque os olhos do diretor iluminavam-se quando desenvolvia um problema técnico e miríades de soluções.
Admiravam-se também com a engenhosidade de algumas construções do nosso metro e com a simplicidade e economia das estações.
Contavam os nossos colegas, que lhes prestavam serviços de tradução, que depois das nossas reuniões, ficavam a sintetizar as conclusões e comentavam em alta voz temas como as ligações dos ramais de Entrecampos e de Sete Rios aos cais da estação da Rotunda (depois chamada Marquês de Pombal I).
Que não acreditavam que fosse possível construi-las, se não as tivessem visto; de facto, o comboio que saía da Rotunda para as Picoas, primeiro curvava para a esquerda e depois passava por baixo do túnel do ramal para Sete Rios, enquanto o túnel do ramal que vinha das Picoas convergia com o que vinha de Sete Rios e evitava as duas saídas; visto em planta, dir-se-ia o traçado das artérias e veias do coração.
Os consultores eram implacáveis na proposta das melhores soluções de acordo com as técnicas.
Fizemos o possível por apreender métodos e conhecimentos técnicos e transformá-los, nos anos seguintes, em diretrizes orientadoras dos projetos futuros.
Só 14 anos depois voltámos a inaugurar extensões da rede, e seguimos, tanto quanto possível, o esquema que os consultores desenvolveram connosco.
Naquele fim de Julho de 1974 já tínhamos para oferecer o esquema geral da ampliação da rede do metro e o seu orçamento.
À reunião, na Av.D.Carlos, compareceram economistas da secretaria de estado da presidência, colegas das direções gerais das florestas, da agricultura, das pescas, da educação e da saúde, colegas da CP (ainda não existia REFER, na altura) , da Junta Autónoma das Estradas.
A oferta de ajuda financeira estava mais vocacionada para infraestruturas e equipamento social do que para o investimento industrial ou nos serviços.
Iniciada a ronda da mesa, foi-se revelando a quase total ausência de planos de investimento e desenvolvimento da estrutura do anterior regime.
É verdade que havia as guerras coloniais que limitavam as hipóteses de melhorias significativas no equipamento social, mas a economia do país, há anos que crescia, graças principalmente ao fluxo de capitais na segunda guerra mundial e aos invisíveis do turismo e da emigração.
Havia muito de incapacidade organizativa e de planificação.
Não tinha sido a estagnação e a fuga ao estudo de melhorias que nos tinham ensinado na alma mater como objetivo a perseguir.
Se não se faziam planos nas direções gerais e nas empresas de planeamento e estudos, não era por causa das guerras coloniais, antes pelo clima de desinteresse.
Até porque havia exceções.
De anos anteriores vinham os projetos da barragem e central de Alqueva, do porto e petroquímica de Sines, de um novo aeroporto internacional em Rio Frio, da irrigação dos vales do Mondego e da Idanha …
Porém, o regime anterior privilegiava a acomodação e a falta de inovação, tinha permitido que se desenvolvesse uma cultura de deixar correr o tempo, por isso o colega da CP disse, parecendo-me a mim que até achando graça, que não havia planos nenhuns para melhorar o serviço da linha de Sintra, (enquanto pela minha mente passavam as imagens de jovens cidadãos pendurados nos estribos dos comboios elétricos suburbanos do Cacem e de Queluz, como se via nas reportagens na Índia de Bombaim e de Calcutá) e os colegas das florestas, da agricultura e das pescas que também não tinham planos (Portugal, país de florestas, país de mar…!).
Galaz sussurou-me que estávamos safos, que bastava dizer o mesmo quando chegasse a nossa vez.
Mas não, não foi o que eu disse.
O que eu disse foi que não tínhamos ainda o projeto de execução, mas já tínhamos o programa base para o desenvolvimento do projeto, com o esquema geral da nova rede de metro bem definido, que o total da rede passaria de 12 para 27 km e que os custos estimados seriam dos tais 10 milhões de contos; que nos dessem apenas 2 anos para podermos começar a obra e mais 3 para a concluir, incluindo novo material circulante, a construir, tal como os túneis, as estações e o seu equipamento, com grande incorporação da industria nacional.
Que a obra permitiria poupar na gasolina do transporte privado e concentrar na cidade serviços e industria, estimulando a conservação e o crescimento do parque habitacional, favorecendo o turismo, etc, etc, etc, que uma área metropolitana é um motor de desenvolvimento.
À saída da reunião, Galaz estava muito preocupado e não consegui acalmá-lo. Mais tarde compreendi porquê; tinha-se matriculado num partido político, já tinha ambições
de colocação em lugares de destaque e já sabia que, politicamente, só devem fazer-se afirmações depois de se ter a certeza de que elas são bem acolhidas.
No dia seguinte, quando, de manhã, ouvia pacientemente as explicações detalhadas da secretária Maria Isabel sobre a dieta a que a sobrinha submetia a filha de 5 anos para tirar o máximo proveito da ginástica no ginásio clube, chegou o telefonema da secretária da administração.
O administrador delegado pedia-me para ir falar com ele, nessa mesma manhã.
Roberto Prata tinha trabalhado na secretaria de estado da presidência e, como economista, tinha colaborado nalgum planeamento do período da primavera marcelista.
Tinha trocado com o anterior administrador do metro, de quem era amigo, que foi ocupar o seu lugar na secretaria de estado.
Fora este que lhe transmitira a minha intervenção, manifestando surpresa com os valores que indiquei.
- Tem de compreender, ralhou-me Roberto Prata, que não está certo o secretário do tesouro telefonar-me a questionar-me sobre umas verbas desta grandeza e eu não estar informado
- Mas, senhor doutor, pode estar certo de que vai ter um relato da reunião, com cópia para o meu diretor que está de férias, claro. Ainda não o comecei porque a reunião foi ontem à tarde, e infelizmente não vai estar pronto hoje porque ainda estou em part-time e de tarde estou no quartel; mas nunca o deixaria por informar.
O administrador lá resmungou mais qualquer coisa, e eu dei-lhe mais umas informações sobre a marcha dos trabalhos dos consultores alemães.
Na verdade, contrariamente ao que alguns puseram a circular, a disciplina nas empresas públicas a seguir ao 25 de Abril não era uma ficção.
Por isso não disse ao administrador que estivesse sossegado, que a época dos bonzos do imobilismo já tinha passado (ingenuidade a minha), que a estrutura das empresas, os seus métodos de gestão e os seus objetivos estratégicos agora eram outros.
Talvez até pudesse dizer que me queixaria no meu quartel ao representante do Movimento das Forças Armadas.
Mas não disse, porque as relações hierárquicas e a disciplina de empresa mantinham-se.
Os consultores continuaram o seu trabalho, os governos provisórios foram-se sucedendo, as administrações, entretanto reforçadas com um delegado do Movimento das Forças Armadas, jovem e cordato capitão da Força Aérea, e o corpo técnico do metro, foram aos poucos definindo o dinheiro de que poderiam dispor, e acabaram por desistir do plano de expansão da rede do metropolitano.
Apenas se reuniu dinheiro para as obras de ampliação das estações originais com cais para comboios de duas carruagens (a isso tinham sido levados os primeiros técnicos por razões de economia) para seis carrugens (passagem de 40 para 105 metros); que foi o que se fez, com alguma capacidade de improvisação, durante os dois anos seguintes.
Melhorou-se assim a capacidade de transporte ao serviço dos cidadãos e cidadãs de Lisboa.
Porém, a desajeitada intervenção de representantes do Município de Lisboa, um certo provincianismo e submissão aos conceitos de títulos de transporte, de passes ditos sociais, da estrutura de preços, critérios esses importados de Paris através de estagiários com boas ligações aos meios políticos portugueses privilegiando as infraestruturas rodoviárias (não obstante a incipiente experiencia da linha de elétricos da Avenida 24 de Julho), a imposição pelos governos de preços de bilhetes e passes muito abaixo dos custos, sem distinção de rendimentos dos utilizadores, a acumulação de dívidas de obras que deveriam ter sido incorporadas na despesa pública, conduziram a um período de estagnação da rede do metropolitano de Lisboa que só terminou com a adesão à União Europeia e a disponibilização de verbas de coesão.
Relativamente bem aplicadas nas expansões ao Colégio Militar e Cidade Universitária em 1988 e ao Campo Grande em 1993, com alguma contenção económica, tirando o episódio infeliz do viaduto do Campo Grande (necessidade de reforço anti-sísmico).
Não foram assim atingidos os objetivos do plano de expansão da rede do metropolitano naquela reunião de fim de Julho de 1974, para o crescimento da economia.
Terá sido mais uma esperança incumprida de Abril .