Há
um tipo de óperas que levanta grandes dificuldades para os seus encenadores.
São
as que utilizam as multidões como personagens principais ou, pelo menos,
decisivas.
São
óperas que concentram a ação no coletivo, ao invés de muitas delas, em que são
mais evidentes os dramas individuais.
Por
exemplo, as óperas de Verdi, com intenção de participar no movimento da
unificação italiana, como Nabuco, ou até as que aparentando dar mais relevo às
personagens principais, como o Rigoletto ou o Baile de Máscaras, dão um papel
crucial aos grupos de aristocratas organizados em grupos de interesses
económicos ou de poder.
Ou
as de Mussorgsky, Boris Gudonov e Kovantchina, e até os Fígaro de Rossini e de
Mozart, com o seu contraste agressivo entre o aristocrata e o grupo de
camponeses ou de desempregados.
Não
que eu queira incensar os objetivos dos movimentos da multidão só por si mesma.
Também não tenho grande fé numa razão que ilumine o caminho a seguir.
A
racionalidade humana fica muitas vezes para trás, com a emoção a transformar a
ação como num movimento de moléculas colidindo com as paredes do seu
recipiente. É então que ficamos dependentes da famosa lei da entropia, auto
regulando qualquer sistema isolado de
modo a atingir o equilíbrio no desordenamento máximo.
E
contudo, devemos utilizar a razão, para tenta virar um pouco esse estado de
desordenamento em nosso favor.
Em
nosso favor, da generalidade dos cidadãos e cidadãs, claro, não de minorias.
Nisso
pensava eu enquanto a manifestação arrancava, descendo a avenida da Liberdade.
O
governo e a crise internacional e nacional tinham posto de acordo grandes
faixas da nossa população.
Como
causa próxima, a politica de desacreditação de professores, médicos,
enfermeiros, funcionários públicos, e de fecho de hospitais, escolas e serviços
púbicos, na mira de poupanças nas despesas públicas com a educação, a saúde e a
segurança social.
Dir-se-ia
que perante esta situação, se impunha uma análise quantitativa.
De
que resultaria, por exemplo, depois de trabalhar as fórmulas do produto interno
bruto de modo a eliminar os termos públicos, uma fórmula-chave para a resolução
da questão: o saldo orçamental de um país é igual à soma de duas diferenças;
uma é a diferença entre os investimentos privados (eventualmente acrescidos das
transferencias de fundos estratégicos comunitários) e as poupanças também
privadas; a outra é a diferença entre as
exportações e as importações.
Seria
então desejável que as palavras de ordem da manifestação fossem as de
reivindicar mais investimento em detrimento das poupanças e mais exportações em
detrimento das importações.
Mas
não, são outros os conceitos, mais emotivos, talvez, que mobilizam as pessoas.
Dado
que era grande a afluencia de manifestantes, houve um momento em que, numa
paragem forçada da marcha, o setor em que eu estava se encontrou com um grupo
de militantes do comité central do partido comunista português.
O
meu amigo sindicalista ativo no metropolitano sentiu-se na obrigação de me
apresentar ao secretário geral como o engenheiro que a comissão de
trabalhadores consulta muitas vezes e que nos faz uns cálculos de vez em quando
para darmos mais força às reivindicações ou para responder á administração.
O
secretário geral era de facto uma pessoa de estabelecimento fácil de empatia.
Garanti-lhe
que o problema dos transportes era a excessiva dependência da economia do
petróleo e do imposto sobre os produtos petrolíferos que tolhia o investimento
nos transportes ferroviários, de maior eficiencia energética que o transporte
individual.
Que
era um problema os decisores não estarem sensibilizados para a necessidade de
evitar o desperdício que todos os dias se faz com o transporte individual e a
estrutura disforme urbanística, com o centro das cidades a desertificar e a
degradar-se e as zonas suburbanas como dormitórios.
E
que daqui não se consegue sair sem a aplicação dos fundos comunitários
estratégicos.
O
secretário geral apreendia bem os conceitos e fazia observações inteligentes.
Falámos
da ameaça que já se desenvolvia de privatização das empresas públicas de
transporte, apresentada como solução dos seus défices crónicos, apesar de
algumas experiencias desastrosas em Inglaterra, na Alemanha e na Bélgica, e de
se saber que o principal da dívida se refere aos investimentos para a
construção das redes que devem ser considerados como contas públicas e não
contas da empresas.
E
lancei-me numa dissertação sobre o azar histórico de não existirem no tempo de
Marx as tecnologias que hoje estão disponíveis e que permitiriam, por exemplo,
evitar as experiencias de centralização excessiva.
Graças
à informática, à miniaturização do processamento eletrónico e às
telecomunicações a inteligência distribuída é agora possível e pode ser
utilizada como ferramenta essencial da democracia direta, da democracia
participativa.
Talvez
que a disponibilidade de tecnologias desenvolvidas tivesse permitido ao
engenheiro Palchinski, consultor do desenvolvimento industrial, petrolífero e
mineiro dos primeiros tempos da união soviética, criador dos princípios de
análise de fracassos e sua correção e vítima do estalinismo em 1928, evitar o
desvio da economia da união para a restrição inadmissível dos direitos humanos.
Talvez
que uma das causas da fragilidade da economia portuguesa seja o pouco peso da
engenharia nas decisões.
O
secretário geral ouvia encantado a tese de que não são só os modos de produção
e os modelos da sua posse que condicionam o processo histórico, mas que, ultrapassados
os determinismos de um conceito científico pré-quantico e pré relativista, as
tecnologias desempenham um papel importantíssimo na organização da sociedade.
Mas
um militante aproximou-se correndo e requisitou a sua presença para análise,
formulação dialética de tese e antítese e proclamação da síntese sobre outras
questões momentâneas noutro local da manifestação.
Chegados
ao Terreiro do Paço, a comissão organizadora, pluralista, fez aprovar a moção a
entregar ao governo e entoou-se o hino nacional.
No
grupo de professoras da minha mulher, punha-se um problema comezinho.
As
instalações sanitárias dos cafés e pastelarias da zona estavam com filas
repletas de pretendentes ou inacessíveis aos manifestantes.
As
estações de metropolitano do Terreiro do Paço e da Baixa Chiado também não
tinham, aliás de há muito, as instalações sanitárias em serviço público.
E
esta é mais uma das manifestações do alheamento da realidade por parte dos
decisores portugueses.
Sentem
que o voto legitimou a forma como pensam todas as questões, ou como os
políticos eleitos delegaram nos administradores, atribuindo-lhe o carater
divino que Bossuet atribuiu aos monarcas absolutistas.
Ou
não pensam, porque não vão a manifestações e não sentem a necessidade de
utilizar as instalações sanitárias públicas em ambiente de multidão.
Será
um conceito angelical dos cidadãos e cidadãs, mas a verdade que é que no século
XIX havia essa preocupação, desenvolveram-se modelos de instalações sanitárias
públicas.
Na
verdade, essa preocupação já existia no tempo dos romanos, é ver os vestígios
em Conímbriga ou lembrarmo-nos da discussão entre Vespasiano e Tito sobre o
imposto sobre as latrinas.
Agora
não, fecham-se instalações sanitárias para economia de custos operacionais e de
pessoal.
As
experiencias feitas em Portugal com equipamentos de utilização mediante moedas ou fichas de aquisição em
máquinas de aceitação de moedas , notas ou cartão de débito também acabam por
não resultar devido às preocupações de economia com a manutenção.
Ou
estaremos simplesmente perante mais um exemplo de vivermos sistematicamente
abaixo do que poderíamos lucrar se fizéssemos os investimentos certos, se
conseguíssemos sair da armadilha da pobreza que reduz o rendimento dos
investimentos.
De
modo que, regressado à rotina profissional, desenvolvi um pequeno estudo com
recurso aos especialistas internacionais de equipamentos na via pública.
Os
representantes da IB Des eaux,
multinacional com toiletes automáticos (APT – automatic public toilet) nos USA
e resto do mundo, forneceram-me elementos para a contabilização de custos e
benefícios e o acesso ao World Toilet Summit, onde pude ler uma experiencia
interessantíssima na Índia, em que as pessoas eram pagas para utilizar os
equipamentos de onde depois se retiravam os resíduos para fertilizantes,
da mesma maneira que os óleos usados
dos restaurantes eram aproveitados para o fabrico de biodiesel.
O
estudo incluía os benefícios decorrentes de evitar a propagação de doenças por
urina ou defecação em lugares de passagem do público.
Juntei
fotos de utilizadores do metro na estação da Baixa, servindo-se das grelhas de
ventilação (horror, lançando as bactérias no ar) ou dos seus vestígios nas
caixas fechadas dos elevadores (mais tarde substituidas por portas envidraçadas).
Calculei
os custos das remodelações de instalações sanitárias em 14 estações (as mesmas,
para chamar a atenção da administração para o problema, que não cumpriam as
normas de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida).
Comparei
com as receitas mediante acesso por moeda, notas ou cartão de débito, estimando,
para as 14 estações, 180.000 euros por ano, admitindo 3.000 utilizações diárias
e 20 centimos por utilização.
E,
mais importante do que isto, contabilizei o valor dos resíduos, isto é, o valor
comercial do amoníaco e compostos azotados para fertilizantes que poderiam
retirar-se da urina produzida pelos utilizadores, numa estimativa anual de 4 m3 de ureia e 6 m3 de fosfatos e amónia.
O
investimento era rentável se considerássemos um agravamento de apenas 5% nos
custos de pessoal e consumíveis das operações de limpeza nos contratos externos
de limpeza das estações, e de 2% nos custos de operação do pessoal afeto às
estações.
Enviado
o estudo à administração, José Sancho e eu recebemos com curiosidade a visita
de Ivo Casais.
Mas
ele não vinha tratar do plano de remodelação, abertura ao público e rentabilização das instalações sanitárias
das 14 estações.
Nem
tão pouco aprofundar o conhecimento sobre o plano de adaptação das estações às pessoas
com mobilidade reduzida.
Vinha
verificar in loco quantos arquitetos estavam nos seus gabinetes.
Quis
saber o que faziam e que trabalho tinham distribuido.
Garanti-lhe
que quando chegasse ao seu gabinete teria no seu email um quadro Excel com a
atividade solicitada e em execução dos arquitetos (era verdade, eu tinha um
quadro Excel com o registo de toda a atividade dos técnicos meus colaboradores)
e que grande parte tinha de ser exercida nos locais de intervenção, como até
era o caso naquele momento da estação do Campo Grande, em que a remodelação das
instalações sanitárias teve mesmo de avançar integrada no conjunto das
alterações motivadas pela construção da sede de uma grande operadora de
telecomunicações mesmo ao lado da estação.
Não
teve seguimento a proposta das instalações sanitárias, nem da acessibilidade
das pessoas com mobilidade reduzida.
Mas
em contrapartida, a minha colega dos recursos humanos recebeu instruções da
administração para implementar o sistema de controle de ponto para todos os
técnicos licenciados de engenharia e de arquitetura.
Referencias:
- teoria do
fracasso de Palchinski – “Adapte-se” de Tim Harford, editorial Presença,
capitulo 1.7
- valor económico
dos toiletes públicos -