Talvez pudesse concorrer a um prémio, mas achei que não devia tirar a fotografia.
Não por estar a aproveitar um modelo sem lhe dar a justa retribuição, mas por pudor.
O homem era jovem e estava depositado como uma rodilha ao cimo das escadas mecânicas da entrada do metro da rua do crucifixo.
Não deveria ter ainda 30 anos, pelo aspeto da barba, descuidada, evidentemente, escura e não farta.
Cabeça descaída , olhos fechados e rosto sujo e inexpressivo.
Os sapatos terão sido ditos de vela, quando fabricados.
As calças são claras, de verão, possivelmente retiradas de um contentor de recolha de roupas usadas ou distribuidas por uma associação benificente, mais preocupada em fazer alguma coisa do que eu que só escrevo.
Tem vestido um blusão de fazenda, usado mas não roto, e a tiracolo uma mala, de cobrador.
É o que distingue os pobres de agora dos pobres de há quarenta anos.
Já não andam rotos nem descalços.
Mas este mal andará, deve ter sido levado para ali e ao fim do dia será recolhido juntamente com o boné que estende inconscientemente, mesmo ao lado do corrimão deslizante de borracha, que por vezes aflora.
A forma como o corpo e as pernas distribuem o peso pelo pavimento e pelo bastidor da escada, como um dos braços se projeta para trás e o outro para a frente, com o boné para as moedas, tem um valor estético, de belo horrível, talvez por ser um corpo jovem, doente, fisicamente e mentalmente, mas um corpo jovem.
Imagino que esteja na mesma posição da semi-deusa grega arrastada por um policia numa das manifestações que mostrei numa fotografia do DN.
Por isso tenho pena de não registar a cena, mas por pudor não consigo.
Atrás de mim, um cidadão pára por momentos, com uma expressão de incredulidade.
Acho-o parecido com o escritor Miguel Real, olhos muito vivos e estupefactos por trás das lentes grossas.
Gostaria de trocar impressões com ele.
Descemos, ambos parados nos degraus da escada mecânica, ele atrás de mim.
Oiço-o desabafar "merda de país".
E quando oiço isto salta-me uma lágrima, assim, sem mais nem menos, como uma donzela.
De impotencia.
De impotencia porque não vou secar a lágrima depositando uma moeda no boné do pobre esquizofrénico ou bipolar ou drogado, simplesmente miserável.
Porque Victor Hugo morreu há mais de cem anos e as universidades que ensinam economia ao mundo ainda não sabem, ou já esqueceram, ou não querem saber, como evitar que as pessoas se tornem miseráveis.
Porque tambem tenho pudor de brincar à caridadezinha, como diz a canção de José Barata Moura.
Porque àquele homem, não o quero escondido, quero-o tratado.
Porque acredito que os impostos servem para o bolo da comunidade e para serem distribuidos conforme as necessidades, e segundo critérios de prevenção, antes que uma pessoa esteja reduzida àquele farrapo.
Isso consegue-se com medidas de desenvolvimento da economia, não apenas com medidas de austeridade, porque só há aumento de eficiencia se houver desenvolvimento, e vice-versa.
Consegue-se com rapazes e raparigas com o curso de técnico de serviço social a fazer o levantamento destas situações e a listar as ações de prevenção e de remedeio.
E para além dos impostos, uma comunidade bem organizada devia poder ter empresas rentáveis a produzir para o bem comum.
Devolvo as acusações que fazem os senhores presidente, ministros, secretários de estado, comentadores encartados, senhores bem postos com lugares de destaque nas instancias económicas e financeiras nacionais e supranacionais.
Não são as semi-deusas gregas sem emprego que depositaram aquele homem ao cimo das escadas mecanicas da entrada do metro da rua do crucifixo.
Nem são os meus colegas que olham para a contratação coletiva, que lhes garantia alguma tranquilidade e que agora a vêem como um objeto cortante, que fere os passageiros que têm menores rendimentos e garantias do que eles, ou que só viajam de metro a caminho do centro do desemprego ou da segurança social.
É do dominio publico que o sistema financeiro internacional se descontrolou, desde o excesso de crédito sem contrapartidas de valores e bens produzidos, até aos off-shores e ao sigilo bancário de paises como a Suiça.
Não precisamos de luxos, nem gadgets, nem de automóveis com 300 cavalos de potencia, nem de coeficientes de Gini próprios de paises de apropriação ilegítima.
Não é um problema de economia.
É um problema de engenharia, é um problema de redes de distribuição de elementos, saber para onde vai o dinheiro e onde há dinheiro para aplicar em soluções com retorno, não em paliativos, para poder haver bolo a repartir, e ir lá buscá-lo (ainda não temos a taxa Tobin a funcionar, nem impostos sobre os off-shores, nem imposto sobre os lucros dos bancos e dos grandes grupos? e não querem que eu diga que em engenharia estas coisas já estariam em operação?).
Ficarão os senhores engravatados que querem explicar às pessoas o que elas devem pensar, satisfeitos apenas com os dois mil milhões de euros que 50% do 14º mês vai poder render?
Não precisamos de mudar leis, nem regulamentos, nem estruturas (discordo da troica, sim, mas penso que conheço melhor a realidade portuguesa do que eles, e sei tambem que structure follows strategy).
Precisamos de organização e de trabalho produtivo, não de desemprego, parece-me que deve ser essa a estratégia; nas empresas há quem saiba trabalhar.
Deixem a estrutura descansada.
Não repitam os erros da privatização dos transportes de Tatcher, deixem-se de juvenis ímpetos de privatização; os CTT? já pensaram que nos USA nem os mais empedernidos dos republicanos pensam em privatizar um fator de união nacional? E querem que as companhias que comprarem a TAP façam depois serviço público para as ilhas?
Façam isso, já que a lei o permite, mas não em meu nome.
Preferia que não fizessem, em nome do enrodilhado ao cimo das escadas mecânicas da entrada do metro da rua do crucifixo.
E especialmente, quando a divida privada deste país é significativamente maior do que a pública, preferiria que lessem com atenção a quadra do poeta algarvio António Aleixo:
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo
calai-vos que pode o povo querer um mundo novo a sério
PS - O senhor primeiro ministro, apresentando em 29 de Junho de 2011 o programa de privatizações na Assembleia da Republica, esclareceu que o que espera obter com o imposto extraordinário sobre o 14º mês não são dois mil milhões de euros como dito acima, mas 800 milhões de euros.