segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A novela do PET aos 18 de dezembro de 2011 - um grupo no metropolitano de Lisboa

                                                               






Recebi de uma jovem colega que continuou no metropolitano um convite para o jantar de despedida de um grupo de colegas que brevemente ou há pouco tempo vão passar ou passaram à reforma .
É de uso quando alguém termina a sua vida ativa profissional dedicar-lhe uma refeição em comum.
Mas já não é tão usual um grupo numeroso como este  fazê-lo, com a agravante de serem, para a maioria, reformas antecipadas.
Técnicos com menos de 65 anos, alguns com 55 anos, insatisfeitos com o clima de trabalho e de incerteza que se vive nas empresas de transportes, assim decidiram.
Uns terão possibilidade de continuar a sua vida ativa profissional, talvez em áreas distintas da sua formação base, outros terão a esperança de virem a ser consultados pelos futuros concessionários privados, outros ainda terão a ilusão de uma segunda juventude e tentarão uma consultoria num país de expressão portuguesa, outros usufruindo o tempo de lazer, outros correrão o risco de se desvanecerem numa reforma de decisões continuamente adiadas.
Porém, continuará a ser verdade que os recursos humanos são o capital mais importante de uma empresa.
E portanto os ativos e o metropolitano ficarão mais pobres, agravada a pobreza com a perda do "saber como" que os retirantes não tiveram tempo nem a quem transmitir.
E sabe-se como é dificil encontrar o caminho de uma informação técnica no meio dos arquivos digitais de Teras de Teras de informação que a transição do papel para os bytes gerou.
Estará o senhor ministro da economia e transportes satisfeito por um dos desideratos do seu plano estratégico de transportes ter  já sido atingido no metropolitano de Lisboa - a redução dos custos com pessoal.
Transferiu custos para o seu colega ministro da segurança social.
Dentro de uma lógica de recessão ou destruição criativas, não é necessária a preocupação com o "saber como".
Bastam os indicadores económicos, e acreditar no que os técnicos afetos ao pensamento dominante arranjarem como argumento técnico, seja ou não consistente, mas que possa ser apresentado numa entrevista televisiva para calar os descontentes e manter apoios indefetíveis.
Por tudo isto, respondi assim à minha jovem colega:



Cara amiga

É uma impressão muito forte ver uma lista tão extensa de colegas que vão deixar a vida ativa no metropolitano de Lisboa.
Nunca se deve escrever sob o efeito de uma emoção como essa, mas devemos também não cumprir um dever, como dizia Fernando Pessoa.
Deixe-se assim exteriorizar a raiva pela impotência perante um facto – o trabalho de muitos de nós é simplesmente ignorado e considerado um desperdício, ou um prejuízo, em vez de fonte de utilidade para a comunidade.
O grave é que um tão elevado número de técnicos abandonar repentinamente a atividade numa empresa é o mesmo que um indicador essencial para a saúde, numas análises clínicas, ter saído do intervalo de normalidade e indiciar uma doença ameaçadora, fatal se não tratada.
Imagine-se a raiva de um médico que não tem antídotos para o veneno, ou instrumentos para intervir, ou fármacos para o tratamento, enquanto recem-chegados, vindos de outros contextos, impõem as suas regras de redução de meios.

Há muitos anos, poucos meses depois de ter entrado ao serviço do metropolitano, viajava eu numa carruagem de metro, ainda as ML-7, encostado à porta da cabina do maquinista, depois de um dia de trabalho às voltas com o cálculo e traçado dos diagramas de marcha.
Aquelas portas tinham um pequeno orifício.
Era das primeiras coisas que nos diziam quando entravámos para o metro.
“Não espreite pelo buraco que uma vez alguém espetou uma esferográfica numa vista” .
Mas não era por causa do orifício que eu ia a ouvir a conversa entre o maquinista e um colega a que dava boleia na cabina.
A chapa deixava passar os sons de forma intelegível, apesar do ruído da composição.

O 25 de Abril de 1974 tinha acontecido havia pouco e era o tempo dos plenários em que todos podiam exprimir-se e em que aos poucos se foi redefinindo a estrutura da empresa, em debate mais ou menos alargado, como raramente veio a repetir-se.
Outros dirão que a reorganização do metro e dos transportes foi obra de senhores com gravata, muito sérios e compenetrados do seu alto saber e poder reconhecido pela democracia recente.
Talvez, mas o entusiasmo que se viveu na altura, em que se sentia a possibilidade de redestribuir o rendimento nacional de forma mais justa, deslocando-o do território do capital para o do trabalho, e de intervir no destino das empresas em que se trabalhava deixou a memória de que não, que não foram, naqueles primeiros tempos depois da revolução, os senhores engravatados que decidiram como o metro ia ser.

Porém, estas coisas têm os seus riscos.
À saída das estações do metro ouviam-se gritos de jovens radicais, às vezes com cara de poucos amigos, sobraçando o jornal do partido, o Luta Popular, e tentando salvar a população não só das forças imperiais e capitalistas, mas também do revisionismo pró soviético.
Do mesmo modo, nos plenários do metro, nas diferentes secções de trabalho e oficinas, aparecia sempre um ou outro militante do MRPP a doutrinar os colegas contra os lacaios do imperialismo.
E era isso mesmo que fazia o colega  a quem o maquinista tinha dado boleia e que eu escutava, encostado à porta da cabina, enquanto a composição chegava à estação Palhavã, que era como se chamava então a estação Praça de Espanha.

Tinhamos então no metro 105 maquinistas e outros tantos técnicos de engenharia.
E dizia o colega, enquanto o maquinista travava suavemente a composição na entrada da estação: “A culpa de não haver dinheiro é da quantidade de engenheiros que cá temos. Não fazem nada, ganham bem e não servem para nada”. E prosseguiu com acusações demolidoras de obediência dos engenheiros aos desígnios imperialistas de Washington e de Moscovo, com o mesmo entusiasmo dos vendedores do Luta Popular, prometendo intervenções decisivas no próximo plenário.
Ainda pensei bater à porta da cabina e desfiar alguns argumentos idealistas de um recem licenciado, esperançoso nas virtudes e nas capacidades da engenharia para contribuir para o bem estar e para a prosperidade de uma comunidade.
Mas o colega irascível seria surdo à definição do problema que justifica uma abordagem com regras para se observar bem e se colocarem hipóteses para a sua solução, para as testarem, para ver bem os parâmetros e as interações em jogo, para executar depois o programa de realização no concreto e ensaiar a obra, o sistema ou o equipamento antes de o colocar em serviço.
E na verdade, se ele estivesse surdo aos argumentos, era porque os engenheiros não eram mesmo necessários.

Pensei nisto com revolta quando vi bem o número elevado de colegas que agora abandonam a vida profissional ativa no metropolitano de Lisboa.
Achei que o colega irascível tinha triunfado.
A esperança do 25 de Abril, de braço dado com o all you need is love dos Beatles e a canções de Zeca Afonso desvaneceu-se  ao longo dos anos.
Com as nossas questiúnculas internas se ia podendo, mas a escola de Chicago de Hayeck e Friedmann e a Goldman Sachs, promovida por Reagan a agencia do governo, fizeram evoluir a economia para a completa desregulação, para a especulação virtual e para o triunfo do interesse egoísta.
Thatcher ajudou, disse que quem aos 30 anos ainda andasse de autocarro devia considerar-se um falhado.
Eram as ideias do MRPP, filtradas pelos académicos das universidades com impacto no mundo da gestão, que triunfavam.
Não é verdade que o senhor presidente da Comissão Europeia foi um distinto militante do MRPP, nos tempos em que eu escutava, encostado à porta da cabina de um ML-7, as doutrinas do seu correlegionário proletário no metro a quem o maquinista deu boleia?

O excesso de oferta de produção e de técnicos, as prodigiosas possibilidades da informática, da eletrónica  e das telecomunicações fizeram esquecer aos decisores a importância do raciocínio cientifico partilhado e referendado.
A economia de _Hayeck e de Friedmann expandiu-se como uma religião de prosélitos entusiasmados.
E começou então a politica de descrédito das empresas publicas e de quem lá trabalha.
Alguns acidentes em Inglaterra com os comboios privatizados não demoveram os académicos entusiasmados com as novas ideias e com os êxitos da informática bancária.
Assim se formaram os governantes que agora temos e as soluções politicas para as questões das dividas mais ou menos estruturais.
O conhecimento cientifico e o “saber como” dos técnicos de engenharia foi sendo menosprezado e considerado qualquer avanço tecnológico como só o sendo se produzisse lucro.
Não faria melhor o colega a quem o maquinista do ML-7 em 1974 deu boleia, enquanto eu escutava encostado à porta da cabina.

Não fui eu que pus os comboios a andar de cada vez que se fez uma ampliação, nem nenhum dos que agora se afastam.
Fomos nós todos.
E parece que agora não somos precisos.
Será.
E se assim for é porque existe a lei da inércia.
O que fizemos foi suficientemente bem feito para continuar a andar, mesmo sem nós.
Durante muito tempo.
O tempo suficiente para passar o pesadelo que se vive.
O pesadelo da incerteza e da insegurança.
Parafraseando o senhor deputado, eles, os senhores governantes, sabem lá o que são metropolitanos, como funcionam, como se fazem, para que servem e porque são úteis.
É natural que nos ignorem.

Tenho pena de não ter podido ficar mais um tempo com os que agora saem, eu que passei à reforma há um ano, por me sentir com poucas forças para defender o conceito de serviço público e de aplicação dos princípios da engenharia no metropolitano tal como os entendia, num contexto que já me pareceu adverso, mas que não pensei conduzisse à ameaça presente.
Não me arrependo de ter sido exigente para os colegas mais novos por os ver agora desconsiderados, uma vez que se tivéssemos sido negligentes, o conceito que do trabalho de nós todos faz o senhor ministro é o de aproveitadores de regalias à custa dos contribuintes  (lá vem escrito no PET: "vamos acabar com as regalias").

Gostaria que os senhores governantes que agora nos querem ensinar a aumentar a eficiência do metropolitano soubessem que no tempo em que andavam de calções, logo a seguir ao 25 de Abril, algumas empresas inglesas e norte-americanas deixaram de lhe vender peças sobresselentes e o metropolitano não parou por causa disso, nem por as vicissitudes dos mercados terem encarecido os fornecimentos ao longo dos anos face ao pobre escudo, forçando os técnicos do metro a encontrar soluções mais económicas.
Fomos depois acusados de despesistas e de contrair dividas astronómicas.
Bem gostaria de o ter evitado, mas o clima de novo-riquismo pesou mais nas decisões das administrações.
Que culpa têm os trabalhadores dos transportes para agora serem acusados de responsáveis pelas dívidas?
Mas o resultado do seu trabalho está bem à vista.
Erguer e manter uma rede de metro, mesmo pequena como a nossa, pôr os comboios a andar com segurança, exige muita capacidade, e as estações até são queridas da população.

Sabem lá eles o que são metropolitanos e como funcionam.

Por isso acredito que os colegas mais jovens que ficarem, em todos os níveis profissionais, independentemente da fusão com a Carris, que até era um objetivo do pós-25 de Abril, na perspetiva duma estratégia de serviço da população de Lisboa e da sua área metropolitana, nada que tenha sido descoberto agora, irão aos poucos reerguendo o conceito de serviço público.
Mesmo que tenha de se penar durante uns anos até as concessões e as privatizações demonstrarem o que realmente distingue, na sua simplicidade, uma empresa privada duma empresa pública.
Na empresa privada, o objetivo principal é obter um lucro para remunerar os acionistas com dividendos.
E contas simples mostram que é muito pequena a probabilidade de que o lucro seja menor do que um diferencial positivo de produtividade relativamente à empresa pública.
Na empresa pública, o objetivo principal deve ser o bem comum (por isso já há muitos anos que se diz que a luta dos trabalhadores destas empresas não é só por eles, é também pelos passageiros, e que a repartição equilibrada de quaisquer sacrifícios por todas as classes de rendimento da sociedade é uma condição essencial), embora os colegas que pensam como o colega a quem o maquinista deu boleia em 1974, enquanto eu escutava a conversa, possam achar que não, que não é o bem estar e a prosperidade da comunidade o objetivo principal.

Como dizia o chefe de esquadra da policia, no Ovo da serpente, de Ingmar Bergmann (a história passa-se no tempo da ascensão do nazismo alemão), se cada um fizer bem o seu trabalho (e os jovens que ficarem vão ter esse trabalho, embora num oceano injusto de desemprego, o que lhes aumenta a responsabilidade perante os que não tiverem a sorte de ter um emprego),  a força que daí resultar será eficaz contra a serpente.

Os técnicos que trabalham no metro sabem melhor do que os economistas e os políticos o que fazer quando um equipamento ou um sistema não está a funcionar bem.
E também saberão transportar esse conhecimento para os casos concretos da vida da comunidade.
Os problemas das dividas e da falta de capital reprodutivo para investimento obedecem às mesmas leis da física que tratam os escoamentos de fluidos.
Se o fluido despareceu, tem de se analisar por onde, tapar as fugas e regular os fluxos canalizando-os para onde produzam trabalho útil com proveito para os utilizadores.
E por isso vamos ter confiança em melhores dias.


Sim, minha senhora, digo tudo isto para lhe dizer que sim, irei ao jantar, opção carne, e prometo que não me vou comover, nem desanimar ninguém, nem tentar convencer seja quem for do que eu penso sobre as causas das coisas e das soluções para os problemas.  


Um abraço do colega reformado

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