Este blogue acha que não vale a pena insistir na semiótica aplicada ao senhor ministro das finanças. Apesar de ser um leitor de Candide, não aprofundou os argumentos de Voltaire e portanto o debate estará esgotado enquanto não for alem de Pangloss.
Mas eis que a semiótica encontra um novo tema na mensagem de natal do senhor primeiro ministro.
O senhor primeiro ministro, sentado num cadeirão, apresenta-se com as pernas traçadas em primeiro plano.
Dirá a semiótica que é uma postura a um tempo defensiva e com o significado de marcar uma distancia relativamente aos ouvintes.
É provável, pelo tom calmo, que por um grande esforço de contenção o senhor primeiro ministro tenha conseguido dominar a crispação de quem ensina ou revela à multidão o caminho de que ela não quer ouvir.
A não ser assim, o tom calmo poderia indiciar o recurso a tranquilizantes; mas talvez não, pelo alivio que o movimento da mãos revelou nas ultimas frases, como quem denota alivio pelo fim de uma tarefa desconfortável, terá sido uma contenção de auto-domínio.
As mãos estão pousadas sobre os joelhos durante a maior parte do tempo da comunicação, os dedos esticados na direção da câmara.
Nunca tomam a posição do professor a despejar sobre a audiencia a sua sebenta, o indicador apertado com o polegar, em movimentos verticais de quem estabelece doutrina a seguir.
Apenas de uma vez o indicador tocou com decisão o polegar, mas os movimentos foram na horizontal, no sentido da abertura comedida dos braços.
Foi quando mudou o registo incitando ao entusiasmo e ao restabelecimento da confiança das pessoas comuns como centro da democratização da economia.
Lembrei-me do capitalismo popular da Thatcher, a mesma convicção e fé na livre iniciativa, no interesse egoista que se traduz no bem comum.
Daí o acoplamento professoral do indicador e do polegar.
Mas não seria necessário o apelo, já muitos portugueses e portuguesas trabalham assim, com as suas capacidades no máximo e um rendimento pouco dignamente classificado por Paul Tomsen como superior ao valor do que produzem.
Não peça mais à inventiva dos portugueses, para não ouvir a portuguesa que vai para Macau onde esperará pelos filhos, dizer que "coragem seria ficar em Portugal sem ter dinheiro para pôr comida na mesa".
Antes, o registo pausado tinha recuperado o discurso da vitima que não resolve as coisas porque a culpa é dos outros, é das estruturas que não deixam retirar o potencial dos portugueses.
Raras foram as vezes em que as mãos sublinhavam o discurso, e as mais das vezes apenas a mão direita, levantando-se do joelho poucos centimetros, segundo uma rotação em torno de um eixo apontado aos espetadores.
A semiótica diria que era um gesto, esse levantar de mão, de persuasão, mas uma persuasão de quem se sente inseguro; por isso as mãos estiveram tanto tempo quietas, abrigadas de uma reação desconfortável do público, que nunca se sabe quando possa repetir-se o protesto da senhora com o filho ao colo a bater no tejadilho do carro oficial.
E os movimentos a duas mãos que pontuaram mais raramente o discurso significariam uma insistencia para reforço das próprias convicções quando fala da rede da confiança, ou o endosso aos cidadãos e cidadãs, depois do seu elogio, da culpabilização das estruturas e dos interesses que violam a mais elementar justiça, agora é convosco, se falharmos sereis vós que não estivestes à altura do meu superior entendimento, porque se eu tenho fé no principio do interesse egoista é porque ele é verdadeiro, mas isto só pode ser dito pelo movimento em amplexo contido das mãos, que rapidamente regressam ao contacto protetor dos joelhos.
Que serão as pessoas comuns (não apenas as de boa fortuna de nascimento... que elegancia enquanto as mãos se abrem e que delicadeza para com os desempregados) que estarão na base das transformações das estruturas.
Que o método será downtop, de baixo para cima.
Como na Sabedoria das Multidões, de James Surowiecky?
Quer que eu acredite nisso?
É assim que está a suceder com o plano estratégico de transportes, é?
Mas, mas...transformações? Se é transformação tem de ser discutida ao pormenor e com apoio amplo.
A avaliar pelo infeliz debate do plano estratégico de transportes, não creio que o governo seja capaz de assegurar esse apoio.
E portanto vamos mudar de estruturas (claro que é preciso mudar de estruturas, este blogue há anos que diz isso, apontando deficiencias na justiça, na segurança rodoviária, na segurança dos cidadão, na educação, na cultura, na saúde, a que continua a assistir após meio ano do novo governo), mas o conceito já discutido neste blogue de "structure follows strategy" mantem-se. E falta o debate amplo sobre as estratégias.
Estranho ouvir o senhor primeiro ministro apelar à confiança invisível, imaterial, intangível à moda de Keynes e à agilização da regulação (ter-se-ão crispado, os dedos das mãos? não se consegue perceber pelas imagens).
Infelizmente, é grande a probabilidade de que o discurso seja uma aplicação do velho hábito português, "o que era bom era" que houvesse uma transformação de estruturas, um aumento de confiança... e depois, não aparece a lista de medidas concretas discutida com os especialistas, sujeita a debate publico.
Nenhuma sociedade que se preze pode desperdiçar o saber acumulado dos mais velhos.
Dito assim, com o movimento persuasivo da mão direita, não impede que eu pense nos meus colegas que pediram a antecipação da reforma aos 55 anos.
Que continuarão na vida ativa, dirão os apoiantes do senhor primeiro ministro, talvez até contratados por operadores privados de transportes.
Mas eu direi que há muito trabalho para fazer nas empresas publicas de transportes, mesmo sem a construção de novas linhas; há muito trabalho na normalização técnica e na acessibilidade da documentação técnica. Para que continue a engenharia a melhorar a manutenção dos sistemas, construções e equipamentos, e a preparar o futuro, quando acabar o pesadelo, para não se cair numa dependencia absoluta do conhecimento técnico estrangeiro.
Mas, ao contrário das palavras bonitas do senhor primeiro ministro, é mais interessante para o governo a diminuição do numero de funcionários nas empresas publicas de transportes ("vamos acabar com as regalias", está escrito no plano estratégico de transportes).
Avaliará o senhor primeiro ministro o insulto que eu sinto em mim quando diz que não se deve desperdiçar o saber acumulado e depois o que eu vejo é exatamente esse desperdício?
Aceitará o senhor primeiro ministro, que pediu confiança, que para eu ter confiança numa pessoa é necessário que ela não diga uma coisa durante uma campanha eleitoral ("a minha garantia é que, se for necessário, lançarei impostos sobre o consumo e não sobre os rendimentos do trabalho") e faça outra depois?
Para poder escrever este texto, revi a mensagem no sitio de uma estação de televisão. Curiosamente, o video seguinte era o do assalto a um supermercado de Albufeira, gravado pelas próprias câmaras de vigilancia, no dia seguinte à da mensagem, vendo-se um grupo de jovens encapuçados roubando carne e outros produtos alimentares.
Fiquei a pensar no potencial de confiança desses jovens para realizar o assalto e na sua capacidade para transformar as estruturas do nosso país de modo a ficarem no centro da democratização económica com cada vez mais inovação nas suas iniciativas e cooperação no esforço para uma maior equidade social na repartição dos sacrificios.
Ou terá sido uma torpe manobra do paginador do sítio da estação televisiva, a querer associar os dois videos pela proximidade?
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